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Em entrevista, pesquisadora fala sobre os riscos do assédio moral à saúde do trabalhador

Antes de ministrar aula sobre o tema na ESMPU, a médica do trabalho e doutora em psicologia social Margarida Barreto fez breve análise sobre o mundo do trabalho e os avanços no combate ao assédio no Brasil.
publicado: 01/09/2015 16h00 última modificação: 31/03/2017 17h24

“Doutora, eu vivo uma jornada de humilhações”. A declaração foi ouvida pela médica do trabalho e doutora em psicologia social Margarida Barreto há cerca de 20 anos, quando a especialista assessorava o Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo e começou a atender trabalhadores que sofriam um tipo de violência que, à época, não tinha nome. O assédio moral, expressão difundida pela médica após realizar uma pesquisa com mais de 2 mil pessoas, é um fator de risco psicossocial à saúde mental do trabalhador e foi um dos assuntos discutidos durante curso de aperfeiçoamento realizado pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) entre os dias 26 e 28 de agosto em Brasília.

Antes de ministrar uma aula sobre o tema aos 25 membros do Ministério Público do Trabalho que participaram do treinamento, Margarida Barreto falou um pouco sobre o mundo do trabalho nos dias de hoje, os riscos à saúde mental e os avanços no combate ao assédio moral no Brasil. Confira a entrevista.


Por que os trabalhadores adoecem tanto?

Margarida Barreto: Porque o mundo do trabalho e a forma de organizar o trabalho mudaram. Para diminuir custos, há mais ou menos 30 anos, as empresas entraram em um processo de reestruturação. Antigamente, os trabalhadores eram demitidos gota a gota. Hoje as reestruturações demitem 200, 500, 1000 ou até mais pessoas de uma só vez. Quem não é demitido fica sobrecarregado e, com medo de perder o emprego, submete-se mais e mais às imposições da empresa, que tem uma lógica muito clara: ela quer ganhar, não importa como. Para aumentar seus lucros, ela tensiona acentuadamente os trabalhadores. Essa sobrecarga de tarefas além daquelas para as quais o trabalhador foi contratado tem uma consequência muito grande do ponto de vista mental. É bastante comum no mundo do trabalho encontrar pessoas jovens trabalhando dez, doze, quatorze horas. Ou seja, estão full time à disposição da empresa. Isso significa flexibilidade do ponto de vista da empresa, que precisa de alguém disponível. É quase o conceito do trabalhador ultraflexível, que é aquele que já não tem mais contrato de trabalho. A empresa chama quando precisa dele. Além disso, nos últimos 30 anos tivemos no Brasil um aumento das terceirizações, da contratação dos profissionais Pessoa Jurídica (PJ) e das alterações no contrato de trabalho. Tudo isso tem um impacto acentuado nas questões da saúde física e mental do trabalhador.

Apesar de haver tantos recursos tecnológicos e outros avanços que buscam facilitar a vida moderna e, por consequência, as condições de trabalho, observa-se que muitos têm pouquíssimo tempo livre. Por que as pessoas trabalham cada vez mais?

Margarida Barreto: É certo que as tecnologias adentraram o mundo do trabalho. Em qualquer setor, percebe-se a presença de novas ferramentas que facilitam, digamos assim, o trabalho físico, mas isso não significa que a demanda mental diminuiu. Ao contrário: hoje a lógica é guiada pela meta. Toda empresa, qualquer que seja o setor, da universidade a um banco, trabalha com metas. Metas que são sempre mutáveis e quase inatingíveis. Infelizmente, alguns a atingem e, ao atingi-la, essa meta vai para a frente. Esse é um fator de adoecimento muito sério que percebemos no mundo do trabalho. Quando falamos em meta, fica mais claro visualizá-la para o setor bancário ou para um call center, mas qualquer categoria trabalha hoje com meta. Porque meta significa mais produção e mais produção significa para o empresário maior lucratividade e maiores ganhos com menos pessoas.

Existe Proposta de Emenda à Constituição para fixar em 40 horas a jornada semanal do trabalhador. Quais seriam os benefícios dessa medida para a saúde mental do trabalhador?


Margarida Barreto: É óbvio que essas medidas beneficiam os trabalhadores, mas devemos estar atentos à questão da eficácia: vai de fato ocorrer uma obediência a essa lei? Isso é o mais difícil. Sabemos, e não adianta sermos inocentes, que no mundo do trabalho existem muitas subnotificações, isto é, os ocultamentos de diferentes formas. Por exemplo, muitas patologias do trabalho, por consequência do trabalho ou da própria profissão, sequer são notificadas, não há sequer a emissão de uma comunicação de acidente de trabalho. Se pararmos para pensar nos números de acidentes e doenças no mundo do trabalho, é algo assustador. Parece que estamos falando de uma guerra e, na verdade, é uma guerra pela produção, por mais lucros, mas que afeta fundamentalmente aquele que trabalha e não aquele que vive do trabalho do outro. Na década de 1980, tínhamos um fenômeno que eu classificava como “o corpo começou a gritar”, quando começaram a aparecer os casos de Lesões por Esforço Repetitivo (LER). A partir dos anos 2000, passamos a observar o aumento de ocorrências de transtorno mental. Hoje, é a terceira patologia com mais notificações na Previdência Social. Esses transtornos mentais estão relacionados com as depressões e podem evoluir para síndrome do pânico. Em primeiro lugar, está o estresse. Eu diria que, a cada dez trabalhadores brasileiros, sete apresentam sintomas de estresse laboral.

Seus estudos abordam a relação entre o assédio moral e o desenvolvimento de doenças nos trabalhadores. Como prevenir o assédio moral no trabalho?

Margarida Barreto: O assédio moral surge dos fatores psicossociais, dos riscos invisíveis. Ele desencadeia a doença e está diretamente relacionado às questões da organização do trabalho. O assédio moral também se insere em uma cultura organizacional que se torna violenta, que reproduz essas práticas de violência ou banaliza esses atos. Se queremos erradicar o assédio moral do ambiente de trabalho, precisamos compreender as suas causas. É necessário atuar na organização do trabalho, na forma de administrá-lo e na cultura organizacional. O primeiro passo seria respeito e reconhecimento. Quando você está em seu ambiente de trabalho, é o mínimo que você quer. O mundo do trabalho atual é individualista, egoísta, mantém uma espécie de discurso que diz ao trabalhador que só depende dele vencer na vida, que ele pode ser um grande empreendedor, cria nele um sonho que é irrealizável à medida que ele entra nessa atuação do cotidiano. No caso do assédio, o trabalhador é humilhado, retirado de sua função sem nenhuma justificativa, sobrecarregado sem absolutamente nada que justifique isso, esvaziado de seu trabalho, isolado, é motivo de fofoca, de discriminações ou porque é negro ou porque é gay ou porque é mais velho, ou porque é um dirigente sindical ativo, combativo. Então, é necessário respeito ao outro e reconhecimento ao saber fazer. É isso que todo trabalhador quer. E, por incrível que pareça, pode parecer tão simples, mas é o mais difícil. Pode-se afirmar que o assédio moral, enquanto figura jurídica, é uma constelação de danos: danos à dignidade, à saúde, danos psicológicos, emocionais. A humilhação cotidiana vai matando a vontade do trabalhador e chega ao ponto tal que, quando culmina com o afastamento dele do ambiente de trabalho, quer seja por demissão quer seja por adoecimento, muitas vezes leva ao suicídio. Estamos falando de algo que, apesar de ser invisível e de não existir uma ferramenta que o meça, como é o caso de um ruído e de uma substância química, é muito forte: adoece e pode matar as pessoas.

O fato de haver estabilidade do emprego no serviço público torna mais difícil a existência de abusos que configurem assédio moral?

Margarida Barreto: Ao contrário. Tenho visto muitos casos no serviço público. As ocorrências de assédio moral que eu tenho encontrado no serviço público, nas empresas públicas, me chamam a atenção pela duração. Eles perduram no tempo. Quando não está mais a fim daquele trabalhador porque ele incomoda, quebra a harmonia, reclama, procura seu sindicato ou reivindica seus direitos, a empresa privada o demite. Primeiro passa pelo processo de assédio – de isolamento, verdadeira tortura psicológica, discriminações, constrangimentos públicos, desqualificações constantes. Se ele resiste, é demitido. No serviço público, não. Como se renovam as governanças, digamos assim, de quatro em quatro anos, sempre se tem a esperança de que aquele governante, aquele gerente, aquele gestor, vai sair quando sair o governador, o prefeito, que tudo vai mudar. Mas não é bem assim. Já tive contato com casos de assédio moral em empresas públicas que já levavam oito anos. Para mim, o que chama mais atenção é que o assédio passa a ser interpessoal. Tanto que hoje tentamos mostrar às pessoas que, para a desconstrução do assédio, a ação não pode ser individual. É uma discussão que deve ser coletiva, envolver todos, porque quem testemunha um trabalhador sendo assediado também sofre, está exposto às humilhações. Então por isso a gente lida com a questão do assédio tanto no serviço público quanto na iniciativa privada como um risco não visível dentro das relações de trabalho: ele se insere no contexto dos fatores psicossociais.

Nos últimos anos, o Ministério Público do Trabalho (MPT) avançou bastante no âmbito da proteção da saúde do trabalhador. Que medidas podem ser ampliadas para que os trabalhadores se sintam mais amparados?

Margarida Barreto: O MPT tem feito um trabalho excelente. Em São Paulo e no Rio Grande do Sul, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho fez uma campanha excelente, com resultados muito importantes principalmente nas regiões Sul e Sudeste, com o aumento de denúncias e maior visibilidade de casos de assédio. Isso tem uma relevância na medida em que tira esse aspecto da humilhação de algo natural, normal, de algo que é um direito, como se fosse um direito do gestor humilhar o outro. Quando se tira desse lugar da naturalização, dá-se uma visibilidade muito maior e as pessoas passam a compreender seus direitos. Por outro lado, tem havido de várias entidades – universidades, sindicatos, associações de vítimas – um empenho muito grande em divulgar, discutir e pensar ações para a questão do assédio moral. Como médica do trabalho, minha opinião é que o Ministério Público necessita de uma melhor infraestrutura para apoiá-lo no sentido da fiscalização, ou seja, talvez uma ação mais conjunta com o Ministério do Trabalho e Emprego para formar pessoas aptas a identificar os riscos não visíveis no ambiente de trabalho. Com base nessa avaliação das condições de trabalho, é mais fácil avançar inclusive nos próprios Termos de Ajuste de Conduta (TACs), um avanço do MPT em relação às questões inerentes ao assédio moral. Outro ponto fundamental é que as multas não podem ser pequenas. As multas devem ter peso suficiente para que o empregador perceba que é necessário, sim, combater a prática de assédio moral. Todas as empresas têm uma preocupação muito grande com a imagem e com os discursos. Mas o que nos interessa é o que ocorre dentro dessa instituição. Para fora a gente sabe que a imagem é sempre perfeita. Mas e para dentro? Como estão esses trabalhadores?

A questão do assédio moral começou a ser discutida no país em 2000, a partir da pesquisa sobre o tema desenvolvida pela senhora. Nesses 15 anos, o que pode ser destacado em termos de combate ao assédio moral no Brasil?

Margarida Barreto: Existem muitos avanços em todos os níveis. Hoje, é difícil encontrar um setor que não saiba o que é assédio. O Ministério do Trabalho e Emprego criou em todo o país núcleos de combate à discriminação no ambiente de trabalho. Recentemente, foi lançado o Observatório Nacional de Combate ao Assédio Moral. Núcleos de estudo em todo o país, em universidades, começaram a surgir, obviamente em consequência de casos dramáticos que ocorreram nesses locais de trabalho. Mas o que importa é que avançaram as discussões e a compreensão de que o assédio moral deve ser combatido coletivamente. Aumentou o entendimento dos sindicatos de que não basta somente ir para uma mesa de negociação: ela é importante, mas é necessário haver uma continuidade da fiscalização. Também se formou a compreensão de que é necessário haver uma lei, mas uma lei somente não basta e nisso a Justiça avançou bastante quando os juízes e as diferentes instâncias passaram a entender o que é o assédio moral. Com isso, muitos julgamentos tornaram-se verdadeiras jurisprudências em relação a essa questão. A lei tem que ter vida. E quem dá vida a ela são os trabalhadores, os dirigentes sindicais e a sociedade como um todo se mobilizando, dizendo “não, não aceitamos”. Acredito que, em relação à violência no ambiente de trabalho, no mundo do trabalho, a tolerância deve ser zero. E esse é um tipo de risco. Em qualquer que seja o risco, quando se lida com ruído, com agentes químicos, existem limites de tolerância; quando se lida com a ergonomia, há sugestões a fazer para o mobiliário, o posto de trabalho. Com a violência não há conciliação. Com a violência, a tolerância é zero.

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