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Resgate da dignidade: vítimas relatam a importância de apoio e amparo de órgãos públicos
Ana viveu a dor dilacerante de perder a então filha única – na época com cinco anos – brutalmente assassinada pelo pai e pela madrasta. Arnaldo perdeu a casa e, por um bom tempo, a dignidade. Os dois não se conhecem, moram em estados diferentes. Ela, em São Paulo, ele, em Alagoas. Mas a distância de 2,4 mil quilômetros que separa o local de residência de ambos parece desaparecer quando os dois relatam o que têm em comum: a experiência de terem sido vítimas de tragédias que, de forma avassaladora transformaram completamente a vida deles e de pessoas próximas. Ana e Arnaldo foram escolhidos para representar, no lançamento do Movimento Nacional em Defesa das Vítimas, brasileiros que têm direitos violados. O projeto oficializado nesta segunda-feira (27), em Brasília, tem o propósito de incentivar membros e servidores do Ministério Público e outros órgãos do sistema de Justiça a ampliar e qualificar o atendimento às vítimas.
Apenas em 2008, ano em que Isabella Nardoni – a filha de Ana Carolina Oliveira – morreu, outros 50.658 brasileiros foram vítimas de homicídio, segundo dados do Atlas da Violência do Instituto de Economia Aplicada (Ipea). Assim como Ana, os familiares dessas pessoas enfrentaram – parte deles ainda enfrenta – dificuldades para ver os casos esclarecidos, os responsáveis pelos crimes punidos e para receber resposta do Estado. Resposta que, conforme lembrou a bancária paulista, não traz de volta a pessoa que se foi, mas “acalma o coração”.
Ao falar aos participantes do evento de lançamento, ela se emocionou em vários momentos, frisando que embora tenha se passado 14 anos do fato, a dor ainda é muito presente. “Pra gente, é como se fosse ontem”. Ana fez questão de dizer que durante dois anos, da morte da filha ao julgamento dos responsáveis pelo crime, se dedicou à busca por justiça e que só conseguiu vencer essa etapa por ter encontrado pessoas, inclusive no âmbito do MP, que mais do que fazer o trabalho, a apoiaram em todas as etapas. “Gostaria que ninguém tivesse que passar por situações como a que passei mas como isso não é possível, espero que esse projeto possa fazer com que as pessoas que entram em uma causa possam atuar de verdade, que lutem pelas pessoas que são vítimas e que merecem ser abraçadas como eu fui”, resumiu.
A história de seu Arnaldo é parecida com a de mais de 14 mil famílias de cinco bairros da capital do estado alagoano. Em meados de 2018, eles tiveram a certeza de que teriam de mudar os planos de passar o resto das vidas nas casas que construíram. Viram ruir, de forma gradativa, os sonhos e as paredes dos imóveis afetados pela atividade de extração de sal-gema. Ao contar um pouco da própria história e a de centenas de conterrâneos, ele relembrou as dificuldades encontradas, inclusive, do ponto de vista financeiro, uma vez que os valores recebidos como indenização não foram suficientes para a compra de um novo imóvel. “Fomos expulsos de onde vivemos por 65 anos. Recebemos um aluguel social insuficiente e ainda enfrentamos limitações todos os dias”, frisou, completando que espera que o projeto lançado hoje possa ser um alento e ajudar as pessoas que ainda vivem a expectativa da indenização e das providências que os permitirão iniciar uma nova vida, não mais como vítimas mas como cidadãos de fato.
As incertezas quanto ao futuro, a falta de teto, a demora pela indenização e a fragilidade de não saber quando poderia retomar a rotina e os projetos de vida só não foram maiores porque o grupo contou com o trabalho de órgãos públicos como os Ministérios Públicos Federal e Estadual e a Defensoria Pública. Instituições que também são a esperança para milhares de vítimas de tragédias coletivas. Um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM) revelou que quase oito milhões de brasileiros foram afetados por catástrofes ambientais apenas nos primeiros três meses deste ano. Foram contabilizadas vítimas que ficaram desalojadas, desabrigadas e até as que perderam a vida.
Violações diversas – A condição de vítima decorre de causas diversas e tem diferentes características. Pode ser individual ou coletiva, passageira ou perene, mais ou menos grave, envolver ou não questões financeiras. No entanto, em praticamente todos os casos, as soluções estão vinculadas de alguma forma à atuação de instituições públicas que agem em nome do Estado. As que integram o chamado sistema de Justiça têm papel de destaque e exatamente por isso, são o foco do Movimento Nacional em Defesa das Vítimas. Um dos grandes desafios, conforme enfatizou o procurador-geral da República e presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Augusto Aras, é impedir que, no momento em que buscam o amparo estatal, essas pessoas voltem sofrer violações e passem pelo fenômeno da revitimização.
“Esse movimento é um verdadeiro reposicionamento humanista do Ministério Público brasileiro. Por isso, estamos fazendo uma convocação aos integrantes dos órgãos do sistema de Justiça e toda a sociedade a conferir um novo olhar para a realidade das vítimas”, pontou Augusto Aras durante o evento de lançamento. Outros participantes também destacaram a importância de serem alterados padrões de atuação de forma que o MP deixe de ser visto apenas como um órgão de acusação e passe à condição de apoio e de acolhimento, que é tão importante para quem sofre as consequências de um crime, de uma tragédia ambiental ou da negligência de quem deveria proteger.
Boas práticas – Uma das frentes de atuação do movimento é a disseminação de iniciativas implementadas nas unidades do MP brasileiro com foco no acolhimento das vítimas. Algumas já integram o portal do projeto, também lançado nesta segunda-feira. É o caso do Centro de Atendimento à Vítima (CAV) do Ministério Público Estadual do Acre. Especializado no tema violência de gênero, o projeto foi criado em 2016 e conta com equipe multidisciplinar. O trabalho envolve o acolhimento, a orientação e o encaminhamento de vítimas e familiares. Dados oficiais mostram que mais de 2,3 mil pessoas já foram atendidas. Atualmente, o público-alvo vão vítimas de violência doméstica e familiar, de crimes contra a dignidade sexual e de motivação LGBTfóbica.
A procuradora de Justiça Patrícia de Amorim Rêgo é a atual coordenadora. Ela conta que desde a implantação, houve redução de 86% dos homicídios de pessoas LGBTIQA+ no estado do Acre. “Foi atendendo essas famílias que enxergamos uma realidade que o Estado brasileiro ainda não enxerga, que são os órfãos dos feminicídios. Crianças e a adolescentes que perdem suas mães e os pais – que na maioria das vezes são presos – e ficam sem nenhuma assistência”, disse. Conforme frisou, o país ainda não implementou nenhuma ação voltada para essas pessoas e que graças à iniciativa realizada no Acre, atualmente o Congresso Nacional discute a implantação de uma política pública nacional voltada à proteção desses brasileiros.
Em São Paulo, o Núcleo de Apoio às Vítimas de Crimes Violentos atende vítimas e familiares de casos registrados nas Promotorias de Justiça da Infância e Juventude, nas Promotorias Criminais Regionais e nas Promotorias Criminais do Foro Central da Capital. Quem está no interior poderá receber atendimento de forma virtual, conforme explica o promotor de Justiça Artur Lemos. Como diferenciais da iniciativa, que existe há três meses, ele cita a criação de um formulário eletrônico que facilita tanto o contato da vítima com o MP quanto de promotores que precisem de apoio do Núcleo. Outra atuação de destaque foi a estratégia de reunir diversas vítimas de um mesmo caso num único processo. “Em casos em que existem inúmeras vítimas de um mesmo agente criminoso temos reunido essas vítimas e atendido a todas conjuntamente. Isso tem sido muito exitoso porque traz força, entusiasmo para que elas possam se reeguer e prosseguir na busca por justiça. Certamente é um caminho sem volta”, ressaltou.
A partir de um projeto-piloto desenvolvido em 2017, foi criada no Rio Grande do Sul a política institucional de promoção dos direitos das vítimas. O promotor de Justiça Felipe Teixeira Neto explica que o trabalho é baseado em três eixos e inclui várias linhas de atuação. O principal objetivo é assegurar que o acolhimento da vítima não seja apenas uma questão teórica, mas algo vivo em cada atuação do Ministério Público, seja em casos de crimes violentos, seja em decorrência de tragédias naturais, violência policial ou outras violações. “Nós queremos aproximar essa atuação concreta do Ministério Público ouvindo as vítimas a partir de uma escuta atenta daqueles que nos procuram e, dessa forma, poder desenvolver uma atuação concreta”, concluiu o promotor.
Escute aqui a reportagem em áudio sobre os relatos.
Assista a íntegra do evento. Confira o álbum de fotos.
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