Por que a Medida Provisória nº 966/20 ofende a Constituição da República de 1988?

publicado 21/05/2020 17h50, última modificação 21/05/2020 17h50

Por Rodrigo de Andrade Belmonte*

Porque o conteúdo da MP trata de assuntos reservados à lei (medida provisória não é lei) e porque contraria a sistemática constitucional de controle, fiscalização e responsabilização da Administração Pública. A reserva legal e o sistema de controle da Administração são institutos jurídicos vinculados ao fundamento de Estado chamado de República, previsto no caput do art. 1º da Constituição da República de 1988.

A medida provisória 966 de 13 de maio de 2020.

O ato normativo sobredito, da lavra do Presidente da República, dispõe acerca da responsabilidade de agentes públicos por ação e ou omissão em atos relacionados à pandemia, especificamente aqueles ligados, direta ou indiretamente, à gestão da saúde pública e da economia.

A referida medida estabelece que agentes públicos apenas sejam responsabilizados nas esferas de controle administrativa e cível quando agirem ou deixarem de agir em razão de dolo e ou de erro grosseiro. Inexistindo dolo e ou erro grosseiro, não há que se falar em responsabilização, pois a MP criou duas excludentes de responsabilidade.

O texto do ato privativo do chefe do Executivo federal dispõe que não se estenderá automaticamente responsabilização à autoridade que decidir amparada em opinião técnica eivada de dolo e ou de erro grosseiro, art. 1º, §1º da MP nº 966/20. O dispositivo ainda prevê condições para responsabilizar aquele que determinar medidas de combate à pandemia, na esfera da saúde pública e ou economia, a saber: a) estarem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica e b) houver conluio entre os agentes.

Ainda na senda de garantir irresponsabilidade àquele que agir em nome do Estado, a medida provisória estabelece que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”, tal como se vê no art. 1º, §2º da norma em comento.

Por fim a norma dispõe no art. 2º que erro grosseiro é aquele manifesto, evidente, inescusável, praticado com culpa grave, elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

E não menos importante, o texto normativo encerra a nova regra estabelecendo que para reconhecimento do erro grosseiro é necessário observar o seguinte:

1) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; 2) a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; 3) a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; 4) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e 5) o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.

O Brasil como Estado republicano e seus mecanismos de proteção do interesse público.

O Brasil é um Estado republicano, isso implica no fato, inquestionável, de que o Estado pertencente ao povo, art. 1º, parágrafo único da CF/88. Apesar de tal assertiva apresentar contornos de obviedade, muitas pessoas desconhecem tal informação. E qual a importância disso em 2020? A relevância está no fato de que aquilo que pertence ao povo é público, indisponível e assim é imprescindível sua proteção estatal e imparcial. A res publica deve ser tutelada e por essa razão existe um sistema para sua proteção.

A indisponibilidade do interesse público impõe a repulsa de atos que causem danos à Administração e, consequente, a responsabilização dos que praticarem tais atos em seu prejuízo, direta ou indiretamente. A sistemática de proteção está prevista na Constituição como Sistema de Controle, Fiscalização e Responsabilização da Administração. Em última instância esse mecanismo de proteção é norma definidora da garantia fundamental que resguarda o poder que emana do povo.

A Constituição consagrou o princípio da reserva legal como a diretriz legislativa adequada para instrumentalizar no plano da existência, da validade e da eficácia as ferramentas que possibilitem a promoção da defesa do interesse público, abrigando-o de ações indevidas e danosas. Sendo assim, sua concretude depende de lei e não de medida provisória.

Exemplo disso é o que dispõe o art. 37, §3º, da CF/88. O referido dispositivo constitucional estabelece que foram reservadas à lei disciplinar as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, especialmente no que diz respeito às reclamações relativas à prestação dos serviços públicos, bem como no que é pertinente à representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na Administração Pública. Aqui há duas possibilidades de controle, fiscalização e responsabilização de agentes públicos que, por disposição expressa da CF/88 devem ser regulamentadas por lei.

Ainda em homenagem ao princípio da reserva legal, a Constituição prevê que em relação aos atos de improbidade administrativa importarão: 1) a suspensão dos direitos políticos, 2) a perda da função pública, 3) a indisponibilidade dos bens e 4) o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível, art. 37, §4º. Salienta-se que, em vista disso, não é autorizado ao legislador infraconstitucional eliminar esse tipo de poder punitivo do Estado, quiçá o Presidente da República por medida provisória.

Também faz parte desse sistema de controle, fiscalização e responsabilização a possibilidade de ação regressiva do Estado em face do agente público causador do dano à Administração Pública, art. 37, §6º da CF/88. E vale ainda destacar que, segundo o Supremo Tribunal Federal (RE 327.904/06), o Estado é o responsável por danos causados pelos seus agentes no exercício da função pública, sendo vedada a responsabilização direta do representante estatal. Isso tudo pelos seguintes motivos: a) responsabilidade objetiva baseada no risco administrativo, b) teoria da imputação volitiva da vontade do Estado e c) possibilidade de promoção de ação regressiva em face do agente público. Ocorre que com a MP nº 966/2020 essa sistemática garantidora da proteção do patrimônio público foi indevidamente flexionada ao ponto de garantir a impunidade daquele que agiu em nome do Estado.

O controle, fiscalização e responsabilização da Administração são regulados por lei e não por medida provisória. Os dispositivos sobreditos estabelecem, ainda que de forma implícita, que matérias a respeito de excludentes de responsabilidade civil e administrativa por atos danosos à Administração não podem ser tratados em sede de MP. MP não substitui lei e, embora tenha força de lei, não é lei.

Admitir-se-ia a eficácia das excludentes de responsabilidade civil e administrativas criadas a partir da MP 966/20, quando e se a norma em estudo for efetivamente convertida em lei pelo Congresso Nacional, antes disso não se deve falar em excludentes de responsabilidade por MP. No mínimo a eficácia desse ato normativo presidencial deveria ser suspensa até que fosse convertida em lei, posição em plena sintonia com a indisponibilidade do interesse público.

Vale ainda destacar a nocividade dessa medida citando que em caso de ato de improbidade administrativa, culposo, (art. 10 da lei nº 8429/92) e nas faltas graves administrativas, cujo dolo não é elemento essencial da conduta, não haverá punição. Isso impedirá a máxima efetividade da Constituição e do sistema de controle, fiscalização e responsabilização do Poder Público. Impossibilitará, inclusive, a promoção de ação regressiva em face de agente público causador de danos arcados pelo Estado.

Da legitimidade e da representatividade constitucional da Medida Provisória

Outra face dessa discussão é a da valoração normativa da legitimidade e da representatividade constitucionais para interferir negativamente no sistema de controle, fiscalização e responsabilização da Administração Pública. Tanto a lei como a MP possuem legitimidade e representatividade, mas em graus diferentes. A lei é fruto da diversidade representativa popular decorrente do exercício indireto do poder que emana do povo. Isso acontece quando o projeto de lei é discutido e aprovado por centenas de parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Tal fato dá à lei legitimidade constitucional superior àquela emprestada à Medida Provisória, pois esta se trata de ato de um homem só, para situações temporárias, excepcionais, relevantes e urgentes. Fora disso, a MP não pode ser tratada como algo ordinário e capaz de mudar o sistema jurídico vigente.

O texto não tem a finalidade de esgotar o tema que ainda pode ser desenvolvido abordando uma comparação da norma em comento com a lei de introdução das normas do direito brasileiro, mas o objetivo foi justamente do estimular a reflexão a respeito da inconstitucionalidade da MP 966/20 que, a princípio ofende a força normativa da Constituição da República de 1988.

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*Rodrigo Belmonte é servidor do Ministério Público Federal, bacharel em Direito, com especializações em Direito Público e Gestão Pública, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo e autor de artigos jurídicos.

Bibliografia: 

Constituição Federal de 1988: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm 
Medida Provisória 966 de 13 de maio de 2020: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv966.htm
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