A distorção do princípio da insignificância nos crimes de contrabando e descaminho

Monique Chequer - Procuradora da República no Município de Cascavel-PR.

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I – Introdução

 

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida nos autos do Habeas Corpus n. 92.438-7/PR, cujo relator foi o ministro Joaquim Barbosa, em síntese, entendeu por aplicar o princípio da insignificância e, assim, trancar a ação penal por prática do crime de descaminho no caso em que o montante dos impostos supostamente devidos pelo paciente era inferior ao mínimo legalmente estabelecido na Lei n. 10.522/2002, em seu art. 20, qual seja, R$ 10.000,00 (dez mil reais)1. A ementa do referido julgado mereceu o seguinte conteúdo:

“Habeas Corpus. Descaminho. Montante dos impostos não pagos. Dispensa legal de cobrança em autos de execução fiscal. Lei nº 10.522/02, art. 20. Irrelevância administrativa da conduta. Inobservância aos princípios que regem o Direito Penal. Ausência de justa causa. Ordem concedida.

1. De acordo com o artigo 20 da Lei nº 10.522/02, na redação dada pela Lei nº 11.033/04, os autos das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva. 3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. 4. O afastamento, pelo órgão fracionário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da incidência de norma prevista em lei federal aplicável à hipótese concreta, com base no art. 37 da Constituição da República, viola a cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante nº 10 do Supremo Tribunal Federal. 5. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal”2.

O que se pretende com essa breve exposição é indicar algumas discrepâncias de tal entendimento ante as balizas que norteiam o princípio da insignificância, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal.

Igualmente, demonstrar que o critério objetivo-formal que foi utilizado para a aplicação do princípio da insignificância – quantum para ajuizamento das execuções fiscais – não se coaduna com a proteção do bem jurídico no crime de descaminho e com os próprios vetores do princípio da insignificância estabelecidos na Corte Suprema3.

 

II – Da desvinculação do bem jurídico tutelado no crime de descaminho do interesse meramente econômico-fiscal

 

Extrai-se dos votos prolatados nos autos do Habeas Corpus supramencionado que o bem jurídico tutelado pelo delito de descaminho é diretamente a Administração Pública, o Erário4:

O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal [...]. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal.

Com as vênias devidas, tal entendimento não releva o verdadeiro objeto de proteção do tipo previsto no art. 334 do Código Penal, o qual possui elementos relacionados, dentre outros, não só ao comércio nacional, mas, também, ao internacional. De acordo com doutrina específica sobre o tema,

enquanto os outros delitos contra o Fisco são tipificados à medida que os governantes preocupam-se mais em intervir no domínio econômico, seja para melhor distribuição e aplicação das rendas comunitárias, seja para um eficaz desempenho da economia, o descaminho é antecipadamente visto como ofensa à soberania estatal, como entrave à autodeterminação do Estado, como obstáculo à segurança nacional em seu mais amplo sentido. O mesmo se pode dizer do contrabando, se a exportação ou importação contraria interesses econômicos do Estado5.

De forma singela, na atividade estatal, verifica-se o caráter diferenciado dos tributos ligados ao comércio exterior – dentre eles os que são considerados para a tipificação do descaminho: Imposto de Importação (II) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)6 – pela simples existência do fenômeno chamado de extrafiscalidade7, isto é, utilização de instrumentos fiscais para outros fins8.

Na realidade, no crime de descaminho, frise-se, não se nega a proteção do Erário, mas, decerto, o seu objeto de proteção direto – e não meramente secundário – é muito mais amplo, como a balança comercial, indústria nacional, direitos do consumidor, direitos autorais etc.9.

Inclusive, conforme será demonstrado adiante, o Brasil celebrou acordos internacionais que visam à repressão do descaminho, de forma que a descontrolada prática de tal crime, principalmente em áreas de fronteira, produz efeitos que extrapolam as fronteiras nacionais.

Assim, demonstrado está um primeiro equívoco no entendimento esboçado na decisão prolatada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, consistente na vinculação do bem jurídico tutelado pelo crime do artigo 334 do Código Penal exclusivamente à “Administração Pública” ou ao “Erário”.

 

III – Separação entre os valores subjetivos do direito penal e os valores objetivos, processuais e financeiros da execução fiscal

 

1. A efetiva realização de atos de cobrança por parte do Fisco – diversos do ajuizamento de ações executivas – dos débitos inferiores a R$ 10.000,00

O princípio da insignificância visa aferir a gravidade de violação exercida sobre bens jurídicos, isto é, “valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”10.

No Habeas Corpus n. 84412/SP11, o Supremo Tribunal Federal criou vetores de aplicação do princípio da insignificância: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) a nenhuma periculosidade social da ação; (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada12.

Nota-se que tais vetores são de caráter subjetivo e, além disso, percebe-se que, mesmo que levem em consideração – para efeito de balizamento – algum caráter objetivo-econômico, este é considerado na exata proporção do quantum subjetivo de afetação no meio social.

Já no que tange à execução fiscal, os vetores de importância, para efeito de ajuizamento da ação, são exclusivamente ligados a um resultado econômico objetivo, isto é, fazer com que ocorra um retorno financeiro equivalente ao cumprimento voluntário da obrigação. Por isso, deve a Fazenda Pública realizar uma aferição de custo-benefício antes de entrar com uma demanda.

Assim, as finalidades das duas normas, quais sejam, a que fixa o valor mínimo para a ação de execução e a que estabelece punição no caso da prática do crime de descaminho, são completamente diferentes.

Nessa linha, os critérios que fazem com que o Estado execute ou não uma determinada dívida são, por exemplo, a falta de estrutura, o prazo necessário para processamento de tais demandas.

Além do mais, outros atos de cobrança, nos débitos inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais), são realizados, a indicar que não há insignificância no caso. Em resposta a ofício direcionado pelo procurador regional da República Douglas Fischer, o procurador-chefe da Dívida Ativa da União, Rafael Dias Degani, em 8 de setembro de 2009, afirmou, adrede:

[…] os débitos para com a Fazenda Nacional de valor consolidado superior a R$ 1.000,00 são inscritos em Dívida Ativa da União (DAU) nos moldes do art. 2º da Lei n. 6.830/80.

A partir do momento em que o débito altera sua condição para inscrito, a Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN) passa a cobrá-lo administrativamente, independentemente do quantum devido. Vale dizer, conquanto o valor não seja suficiente para a realização do ajuizamento (art. 1º, inc. II, Portaria MF n. 49 – R$ 10.000,00), a PFN pratica vários atos de cobrança (documento anexo) e a inclusão do CNPJ/CPF do contribuinte no Cadastro de Inadimplentes (CADIN) na forma e tempo previstos no art. 2º da Lei n. 10.522/02.

Convém anotar, por fim, que o débito inscrito de pequeno valor, assim entendido menor de R$ 10.000,00, é considerado como restrição para fins de certificação fiscal e de restituição/ressarcimento de tributos (art. 7º do Decreto-Lei n. 2.287/86)13.

Ora, diante disso, sustentar o entendimento de que o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é insignificante, por constituir uma conduta administrativamente irrelevante, é, parafraseando José Carlos Barbosa Moreira, repetir qual papagaio algumas tolices14.

Claro que não se está a defender uma completa desvinculação entre a insignificância no crime de descaminho e os critérios de importância do crédito fiscal, apenas o que se defende é que: primeiro, tal vinculação não é imediata, automática, até porque, no direito penal, devem ser analisadas as peculiaridades do caso concreto; segundo, tal elo, de forma alguma, deve ser feito com um aspecto objetivo-econômico-processual, de propositura de ações fiscais.

Dessa forma, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), fixado pelo art. 20 da Lei n. 10.522/2002, como limite para a ação executiva, leva em consideração unicamente critérios valorativos econômico-processuais, e, inclusive, em função disso, não se pode concluir que aquela quantia é desimportante para o Erário.

Em síntese: o fato de o Fisco, por questões processuais, estruturais e administrativas, optar por não executar as dívidas inferiores ao patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) não indica, em hipótese alguma, insignificância sob o aspecto subjetivo-material.

O que é um valor insignificante? É aquilo que é inexpressivo, de “ínfima afetação”15, sem qualquer importância, de forma que o Fisco nem reconheça aquilo como crédito.

Será que iludir tributos na entrada de mercadorias no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) é irrisório? Nem se fale que “Essa análise não pode ser feita, pois já estabelecida previamente pelo Fisco”. Além de o princípio da insignificância ser dirigido ao magistrado16, na análise do caso concreto, afirmar que o dito “insignificante”, sob o aspecto econômico-processual, é insignificante sob o aspecto subjetivo-material, de tutela do bem jurídico, é confundir, com todas as vênias devidas, esses dois planos diversos do ordenamento jurídico.

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de sua Terceira Seção, em julgamento datado de 27 de maio de 2009, refletiu sobre o caso posto, nos autos do EREsp n. 966.077, na linha do sustentado acima. Após, por conta de julgados do Supremo Tribunal Federal, alterou, infelizmente, sua posição17.

Mister compreender, por fim, que a insignificância, também, deve ser analisada em seu aspecto global, isto é, em relação à “extensão da lesão produzida”:

A insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem jurídico atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida.

Concluindo, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade. Mas essa insignificância só pode ser valorada através da consideração global da ordem jurídica18.

Note-se, dessa forma, que, ao se afirmar que R$ 10.000,00 (dez mil reais) é um valor irrisório para fins de aplicação da lei penal, ignora-se a insignificância aferida sob esse aspecto global: não apenas em seu caráter financeiro – mencionado pela decisão do Supremo Tribunal Federal –, mas, principalmente, em relação aos prejuízos causados aos demais bens jurídicos protegidos pelo crime de descaminho, isto é, a balança comercial, indústria nacional, direitos do consumidor, direitos autorais etc., data venia, substancialmente desconsiderados na referida decisão.

 

IV – Diferença entre a seara fiscal – postergação do momento da execução – e a seara penal – aniquilação completa do jus puniendi


O art. 20 da Lei n. 10.522/2002 não tem o condão de dispensar a Fazenda Nacional de cobrar seus débitos, desde que o somatório das dívidas ultrapasse o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Nota-se, então, que o patamar estabelecido pelo mencionado artigo é para o ajuizamento de execuções, ou seja, a Fazenda Nacional não renuncia ao seu direito de executar, nem afirma que o crédito é inexpressivo, mas apenas posterga o momento do exercício daquele. Alcançando-se o montante-limite – R$ 10.000,00 (dez mil reais) – através de outros débitos fiscais, a execução será postulada. Tal questão já foi objeto de reflexão nos Tribunais pátrios:

Recurso especial. Penal. Crime de descaminho. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Valor sonegado superior ao limite previsto para extinção dos créditos tributários.

1. O art. 20 da Lei nº 10.522/02 não deve ser utilizado como parâmetro para aplicar o princípio da insignificância, pois o dispositivo apenas permite o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais com valor igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), não tendo o condão de dispensar a Fazenda Nacional de cobrar aludidos débitos, desde que o somatório das dívidas ultrapasse este limite.

2. A extinção do crédito tributário ocorre apenas na hipótese prevista no art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, razão pela qual deve ser adotado como piso para aplicação do princípio da insignificância o valor nele determinado, tal seja, igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais), consoante entendimento adotado pelas duas Turmas deste Sodalício.

3. Recurso provido para cassar o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento da Ação Penal19.

Já se vislumbra uma clara diferença entre as duas searas, pois, no direito penal, não se posterga nada. A demanda é julgada improcedente, com irreversível trânsito em julgado, simplesmente porque o valor atingiu um patamar inferior ao limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Em um caso, por exemplo, em que a ilusão total de tributos federais alcançou o valor de R$ 5.500,00 (cinco mil e quinhentos reais), se o acusado praticasse, novamente, a mesma conduta típica – de forma espaçada, sem utilizá-la como modus vivendi –, não seria duplamente punido na esfera penal, pela aplicação distorcida do princípio da insignificância e, ao revés, seria executado na esfera administrativa: uma prova de que não houve insignificância.

Dessa forma, a premissa de que o Estado estabelece um valor para a tutela cível que deveria ser considerado para fins penais só é válida para a hipótese em que os débitos fiscais sejam efetivamente renunciados por aquele ente20.

 

V – Da necessidade de análise casuística do princípio da insignificância – impossibilidade de o legislador estabelecer abstratamente o que é insignificante

 

A aferição do princípio da insignificância “há de ser resultado de uma análise acurada do caso em exame, com o emprego de um ou mais vetores”21. Caso contrário, se fixado abstratamente em uma norma, sem um critério seguro, pode gerar injustiças, pois não será considerado o conjunto de fatores econômico-sociais que envolvem cada fato delituoso.

Claro que, na lei, referências abstratas podem ser buscadas, mas, nunca, um critério abstrato pode ser transportado, indiscriminadamente, para o âmbito penal, como base de aplicação do princípio da insignificância22.

Ademais, não se pode permitir a subordinação direta da tipicidade penal do delito de descaminho ao juízo discricionário que o legislador faz sobre o momento em que a execução fiscal será postulada.

Penal. Descaminho. Art. 334 do Código Penal. Lei 10.522/2002. Tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas avaliadas em R$ 6.630,00. Princípio da insignificância. Não-aplicação. Substituição da pena. Prestação pecuniária fixada em valor exacerbado. Redução que se impõe. Réu beneficiário da assistência judiciária gratuita. Dispensa de custas processuais. Art. 3º, inciso II, da Lei 1.060/1950. Apelo parcialmente provido.

1 – Conquanto seja tarefa do legislador selecionar e tipificar penalmente as condutas criminosas, a avaliação da tipicidade pelo juiz não se resume ao plano meramente formal, em face do modelo adotado pela lei, mas também no plano substancial, no sentido de verificar se a conduta do agente, na persecução penal, ofende de maneira significativa o bem jurídico tutelado. Se a resposta for negativa, deixa de existir o crime, ou pelo menos o interesse de agir, como uma das condições da ação penal.

2 – No caso, a quantidade de mercadoria apreendida, que totaliza o valor de R$ 6.630,00 (seis mil seiscentos e trinta reais), impede a aplicação do princípio, pois configura efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

3 – O fato de a Fazenda Pública não ajuizar execução fiscal de valor inferior a R$10.000,00, nos termos da Portaria 49/2004, do Ministério da Fazenda, e mesmo a teor do art. 20 da Lei 10.522/2002, não justifica, na linha da orientação uniformizadora do colendo Superior Tribunal de Justiça, a aplicação da teoria da insignificância em casos de descaminho de valor não superior a R$10.000,00, de forma generalizada.

4 – Assim, considerando que o total do imposto sonegado ultrapassa o montante previsto no art. 18, §1º, da Lei 10.522/2002 (R$ 100,00), fica afastada a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, na linha do entendimento da 2ª Seção deste Tribunal (EINRC 2005.34.00.025889-8/DF; Rel. Des. Federal Ítalo Fioravanti Sabo Mendes, Relª Conv. Juíza Federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho, e-DJF1 de 07/04/2008, p.112).

5 – De fato, “O art. 20, caput, da Lei 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante” (REsp 685.135/PR, Rel. Min. Felix Fischer, in DJ 2/5/2005). Portanto, “Se o valor do tributo excede o limite pelo qual o Estado expressa o seu desinteresse pela cobrança, não há falar em aplicação do princípio da insignificância” (HC 35987/RS, relator ministro Hamilton Carvalhido, DJ de 3 mar. 2008, p. 1) (TRF1, ACR n. 200435000026998, relator juiz Tourinho Neto. Data da decisão: 26 ago. 2008, Terceira Turma, e-DJF1 de 12 set. 2008, p. 6).

Outro aspecto interessante deve ser exposto: conforme cediço, a aplicação do princípio da insignificância no direito penal exclui, segundo a maioria da doutrina, a tipicidade do crime.

Pois bem. A Lei n. 11.033, de 21 de dezembro de 2004, que alterou o art. 20 da Lei n. 10.522, de 19 de julho de 2002, foi objeto de conversão da Medida Provisória n. 206/2004, a qual tinha como única finalidade – no dispositivo modificado – aferir economicamente o custo de ajuizamento das execuções fiscais.

Contudo, acórdãos como o prolatado no HC n. 92.438/PR, data maxima venia, estão desvirtuando a finalidade da norma, pois aplicam, sem outros critérios – e isso pode ser constatado da leitura do inteiro teor da decisão, a qual somente fez considerações sobre o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) –, diretamente o patamar estabelecido pela Lei n. 11.033, de 21 de dezembro de 2004.

A se adotar um critério automático de exclusão da tipicidade do crime unicamente por conta da norma, sem análise do caso concreto, estar-se-ia admitindo, diretamente, a exclusão de tipicidade por uma simples medida provisória.

Faz-se necessário repetir que, no caso concreto, o critério estabelecido pela medida provisória supramencionada foi o único existente para o trancamento da demanda penal. No acórdão analisado, nenhuma outra consideração foi feita, a não ser a aplicação direta do patamar fixado.

 

VI – Dos princípios da subsidiariedade, fragmentariedade e intervenção mínima

 

Outro equívoco da respeitável decisão proferida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal foi o de considerar que os princípios da subsidiariedade, fragmentariedade e intervenção mínima estariam sendo afetados porque, na esfera administrativa, as dívidas inferiores ao patamar de R$ 10,000,00 (dez mil reais) não são executadas, in verbis:

À luz de todos os princípios que regem o direito penal, especialmente o princípio da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima, é inadmissível que uma conduta seja administrativamente irrelevante e, ao mesmo tempo, seja considerada criminalmente relevante e punível! [destaques conforme o original].

Com o respeito devido, a compreensão equivocada deriva do entendimento de que o bem jurídico tutelado pelo direito penal, no crime de descaminho, é exclusivamente o financeiro.

Precipuamente, conforme já se destacou acima, o crime de descaminho não foi criado para proteger as finanças do “Poder Público”, caso contrário haveria um excessivo “bis in idem nas razões de tutela”, em face dos crimes contra o Sistema Tributário23.

Por mais que se fale em proteção do Erário, este não é o foco primordial no crime de descaminho. Deve-se ressalvar que, além de um aspecto de proteção – diga-se, principal, e não meramente secundário – da indústria e do comércio nacionais, há uma ligação com o próprio comércio internacional, e uma prova disso é a existência da Convenção sobre Repressão do Contrabando, assinada em Buenos Aires, em 1935, e depositada na União Pan-Americana, em 29 de março de 1938, no qual o Brasil foi um dos países signatários.

Nessa linha, cabe transcrever parte do Parecer n. 1.824/2003, da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a respeito do texto da Convenção para, dentre outros, Prevenir e Combater a Evasão Fiscal e sobre Matérias Aduaneiras, celebrada entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Paraguai, ad verbum:

O Artigo 34 determina que a fiscalização e o controle das mercadorias submetidas aos regimes especiais de Depósito Franco e de trânsito aduaneiro ficarão a cargo das autoridades aduaneiras dos respectivos Estados Contratantes.

O Título III trata das Disposições sobre a Prevenção e Repressão ao Contrabando, ao Descaminho e à Falsificação de Produtos Derivados do Fumo. Prevê ações conjuntas a serem empreendidas pelas autoridades aduaneiras e aquelas consideradas pelos Estados Contratantes como competentes, e o intercâmbio de informações tendentes à prevenção, investigação e repressão do contrabando, do descaminho e falsificação de cigarros e outros derivados do fumo, materiais e insumos utilizados para sua fabricação [destacou-se]24.

Tudo isso significa que o Brasil assumiu compromissos externos para repressão dos crimes de descaminho e aceitar o excessivo patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para aplicação do princípio da insignificância é, no mínimo, desrespeitar tais acordos internacionais.

 

VII – Propostas para o estabelecimento de critérios na aplicação do princípio da insignificância

 

Malgrado a aferição da aplicação ou não do princípio da insignificância deva ser realizada de forma pontual, a fim de tornar possível a análise dos aspectos subjetivos e materiais que envolvem o réu e a própria demanda, não se pode negar que o julgador, na análise do caso concreto, muitas vezes, vale-se de algum critério monetário que orientará o seu juízo, para fins de aplicação ou não daquele princípio.

Ressalte-se que não se está aqui a defender a utilização pura e simples de qualquer parâmetro monetário, de forma automática, pois, como já se salientou, o direito penal não se presta a tais abstrações, dado o seu caráter eminentemente subjetivo e casuístico.

Por outro lado, não se pode negar que um critério monetário seria muito justificável, tanto sob o ponto de vista prático – em virtude do grande volume de ações criminais envolvendo os delitos de descaminho –, quanto do ponto de vista da necessária segurança jurídica, esta utilizada no sentido de que, tanto quanto possível, deve-se conferir tratamento semelhante a réus que possuam condições objetivas e subjetivas parecidas e pratiquem delitos com mesmo grau de afetação ao bem jurídico.

Outrossim, tais vetores monetários devem estar ligados às bases da política criminal que orientam o tipo. Em relação ao crime de descaminho, dois são os critérios, a priori, vislumbrados.

Um primeiro critério, que é o estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça, leva em consideração o valor de R$ 100,00 (cem reais), quantum esse que permite a extinção in limine do crédito tributário – Lei n. 10.522/2002, art. 18, § 1º.

Uma outra referência é a adoção do quantum de US$ 300,00 (trezentos dólares americanos) e de US$ 500,00 (quinhentos dólares americanos), utilizados pela Receita Federal como limite para a isenção de tributos relativos à importação de mercadorias.

Nas hipóteses em que, por óbvio, subsistir a tipicidade formal25, trata-se de montante razoável e que poderia sim ser considerado, em grande número dos casos, como inexpressivo, além de estar em consonância com o entendimento do Fisco, estabelecido na Instrução Normativa SRF n. 177, de 6 de outubro de 1998, com a alteração dada pela IN SRF n. 538, de 20 de abril de 2005, in verbis:

Art. 6º A bagagem acompanhada está isenta relativamente a:

I – livros, folhetos e periódicos;

II – roupas e outros artigos de vestuário, artigos de higiene e do toucador, e calçados, para uso próprio do viajante, em quantidade e qualidade compatíveis com a duração e a finalidade da sua permanência no exterior;

III – outros bens, observado o limite de valor global de:

a) US$ 500.00 (quinhentos dólares dos Estados Unidos) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via aérea ou marítima;

b) US$ 300.00 (trezentos dólares dos Estados Unidos) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via terrestre, fluvial ou lacustre.

Parágrafo único. Por ocasião do despacho aduaneiro, é vedada a transferência, total ou parcial, do limite de isenção para outro viajante, inclusive pessoa da família” (destacou-se).

Nesta vereda, registre-se que tal critério foi adotado pela 2ª Câmara de Coordenação do Ministério Público Federal, Voto n. 30/2008, Ata da 442ª Sessão, Brasília, DF, de 16 de junho de 2008:

Processo: 1.21.000.000025/2008-93 (voto 30/2008). Relator: Dr. Wagner Gonçalves. Ementa: Procedimento administrativo. Representação fiscal para fins penais. Descaminho. Art. 334, §1º, “c”, do Código Penal. Valor total das mercadorias que não ultrapassa o valor limite de isenção fiscal. Princípio da insignificância. Insistência no arquivamento. Nos termos da Instrução Normativa n.º 538 da SRF, de 20/04/2005, a cota de isenção de tributos relativos à importação e exportação de mercadorias é de US$ 300,00 (trezentos dólares americanos). No caso vertente, as mercadorias apreendidas foram avaliadas em R$ 261,00 (duzentos e sessenta e um reais), sendo certo afirmar, portanto, que não incide tributo algum sobre tal montante. O pequeno valor da mercadoria justifica a aplicação do princípio da insignificância, pois é manifesto o desinteresse do Estado em punir conduta inexpressiva, que é atípica. Voto pela insistência no arquivamento26.

Sem dúvida, as sugestões de adoção dos critérios acima descritos não afastam a aferição de outros, desde que coerentes com o bem jurídico protegido pelo crime descrito no art. 334 do Código Penal e com o próprio princípio da insignificância.

Conclusão

 

Nesta breve exposição, alguns pontos merecem destaque:

a) Necessidade de haver a desvinculação do bem jurídico tutelado no crime de descaminho do interesse meramente econômico-fiscal de ajuizamento das execuções fiscais.

b) Separação entre os valores subjetivos do princípio da insignificância e os objetivos processuais e financeiros da execução fiscal. Deve-se compreender que o equívoco não está no valor estabelecido pela Fazenda Nacional, mas, sim, na adoção desse critério para a aplicação do princípio da insignificância no direito penal.

c) Nos débitos inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais), ocorrência efetiva de atos de cobrança por parte do Fisco – diversos do ajuizamento de ações executivas –, além da inclusão do CNPJ/CPF do contribuinte no Cadastro de Inadimplentes (Cadin), na forma e tempo previstos no art. 2º da Lei n. 10.522/2002, e aplicação de restrições para fins de certificação fiscal e de restituição/ressarcimento de tributos (Decreto-Lei n. 2.287/1986, art. 7º).

d) Compreensão de que, ao se transportar o critério objetivo-formal de ajuizamento das execuções fiscais – no caso o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) – para o direito penal, ocorrerá uma aniquilação completa do jus puniendi e, ao revés, no âmbito administrativo a possibilidade de execução ainda irá persistir, por tal valor não ser nem um pouco irrisório.

e) Necessária análise casuística do princípio da insignificância – impossibilidade de o legislador estabelecer indistinta e abstratamente o que é insignificante, sem um critério seguro de referência.

f) Não violação dos princípios da subsidiariedade, fragmentariedade e intervenção mínima na desvinculação do princípio da insignificância no direito penal do quantum necessário para ajuizamento das execuções fiscais, já que são esferas completamente diversas do ordenamento jurídico.

 

Referências

 

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Dotti, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Moreira, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: 6ª série. São Paulo, Saraiva, 1997.

Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 1.

Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

 

1 Posteriormente, a Primeira Turma do STF também aplicou o referido valor – HC 96309, relator(a) ministra Cármen Lúcia, julgado em 24.3.2009, DJe-075, divulg. 23 abr. 2009, public. 24 abr. 2009, Ement., vol. 02357-03, p. 00606.

2 STF, HC n. 92.438-7/PR, relator ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgamento em 19.8.2008, DJe-241, divulg. 18 dez. 2008, public. 19 dez. 2008, Ement., vol. 02346-04, p. 00925. Disponível em: <https://www.stf.jus.br>. Acesso em: 9 jan. 2008.

3 A decisão de se utilizar o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), relativo às execuções fiscais, para efeitos de insignificância, constitui mais uma hipótese de equivocada “pó litização” jurisdicional do direito penal, ao lado de outras, inclusive, realizadas pelo Poder Legislativo, qual seja, art. 9º da Lei n. 10.684, de 30.5.2003, que dispõe sobre a extinção da punibilidade pelo parcelamento ou pagamento nos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137, de 27.12.1990, e arts. 168-A e 337-A1 do Código Penal. Em 28.5.2009, foi publicada a Lei n. 11.941, de 27.5.2009, que dispôs no mesmo sentido. São posturas que atingem relevantes bens jurídicos, os quais deveriam ser eficazmente tutelados e não o são.

4 Tal raciocínio deriva do fato de que, durante toda a exposição dos votos proferidos, a questão foi tratada sob a ótica exclusivamente financeira e administrativa.

5 Carvalho, 1988, p. 4-5.

6 “[...] O montante dos impostos suprimidos pelo réu deve ser calculado com base somente na cobrança do II e do IPI, pois não há incidência de PIS e Cofins sobre a importação de bens estrangeiros que são objeto de pena de perdimento. Inteligência do art. 2º, inciso III, da Lei nº 10.865/04 [...]” (TRF4, Recurso Criminal em Sentido Estrito n. 2005.70.01.004468-1, relator(a) desembargador(a) Salise Monteiro Sanchotene, DJU de 15 fev. 2006). Além do referido julgado, cabe destacar que o art. 334, caput, do CP, fala, expressamente, em “pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.

7 Carvalho, 1988, p. 5.

8 “Há extrafiscalidade quando o legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou bases de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Por aí se vê que a extrafiscalidade nem sempre causa perda de numerário; antes, pode aumentá-lo, como, por exemplo, quando se exacerba a tributação sobre o consumo de cigarros” (Carrazza, 2007, p. 108-109).

9 Ao tratar da relevância de uma atuação mais eficaz no âmbito dos crimes econômicos ligados à macrocriminalidade, dentro dos quais se encontra o crime de contrabando e descaminho, a autora Márcia Dometila Lima de Carvalho salienta que: “Os delitos econômicos têm, como bens jurídicos, valores supraindividuais e violam a confiança que deve existir como base da sociedade. Enquanto os bens jurídicos, defendidos pelo Direito Penal clássico, relacionam-se com o livre desenvolvimento da personalidade de cada homem individualmente considerado, os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal Econômico dizem respeito à atuação da personalidade do cidadão, enquanto fenômeno social […] os bens jurídicos do Direito Econômico surgem como concretização dos valores, ligados aos direitos sociais e à organização econômica, contidos ou pressupostos na Constituição” (Carvalho, 1992, p. 100-101).

10 Toledo, 2002, p. 16.

11 Segunda Turma, julgamento em 19.10.2004, DJ, de 19 nov. 2004, p. 00037, Ement., vol. 02173-02, p. 00229, RT, v. 94, n. 834, 2005, p. 477-481, RTJ, v. 192-03, p. 963. Tal entendimento vem constantemente sendo adotado: vide HC 94931/PR, Segunda Turma, relator(a) ministra Ellen Gracie, julgamento em 7.10.2008, DJe-216, divulg. 13 nov. 2008, public. 14 nov. 2008, Ement., vol. 02341-03, p. 00453.

12 Não se analisará nesta pequena exposição a correição de tais vetores. O que se irá demonstrar é que determinados vetores foram fixados e decisões como a proferida nos autos do HC n. 92.438-7/PR vão de encontro a eles.

13 Ofício n. 68/09-PDA/PRFN4R/RS.

14 Moreira, 1997, p. 118.

15 Dotti, 2004, p. 68.

16 Também o legislador, sem dúvida, poderá fixar critérios de insignificância, mas desde que sejam observadas as características de generalidade e abstração. Isso, sem dúvida, acarretará a conclusão de que aqueles critérios deverão ser fixados em patamar mínimo.

17 A notícia do referido julgado consta do caminho <https://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/ engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92318>. Contudo, logo após, influenciada por decisões advindas do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção do STJ, no julgamento do Recurso Especial n. 1.112.748-TO, em 9.9.2009, assentou que o patamar da insignificância seria de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

18 Bitencourt, 1997, p. 103.

19 STJ, REsp n. 999339, Quinta Turma, decisão de 18.9.2008, relator ministro Jorge Mussi, DJE, de 20 out. 2008. Por amor à brevidade, na mesma linha, somente irão ser citados os diversos julgados existentes no Superior Tribunal de Justiça: (a) REsp n. 1025244, Quinta Turma, relator(a) ministra Laurita Vaz, decisão de 4.9.2008, DJE, de 29 set. 2008; (b) AGREsp n. 1010720, Sexta Turma, relator(a) ministra Jane Silva, decisão de 21.8.2008, DJE, de 8 set. 2008; (c) AGRESP n. 995443, Quinta Turma, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, decisão de 19.6.2008, DJE, de 18 ago. 2008; (d) HC n. 35989, Sexta Turma, relator Nilson Naves, decisão de 3.3.2005, DJE, de 31 mar. 2008; (e) HC n. 108.966, Quinta Turma, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, decisão de 2.6.2009.

20 Deve-se considerar, ainda, o fato de que, conforme sustentado acima, o descaminho protege outros bens jurídicos além do patrimônio estatal.

21 Prado, 2007, p. 155. A doutrina é homogênea na análise dessa questão. Segundo Fernando Capez, “O princípio da insignificância não é aplicado no plano abstrato [...] Tal princípio deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. Em outras palavras, nem toda conduta subsumível ao art. 155 do Código Penal é alcançada por este princípio, algumas sim, outras não. É um princípio aplicável no plano concreto, portanto” (Capez, 2007, p. 12).

22 Mesmo assim, conforme já se falou acima, tais referências gerais e abstratas, se fixadas pelo legislador, devem sê-las em um patamar mínimo, de forma que, certamente, em quaisquer casos, aquele quantum será considerado insignificante. Caberá ao magistrado, nas demais hipóteses, considerar aspectos peculiares do caso concreto, mesmo que superiores ao valor que o legislador determinou. O que se fez, no caso do patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais), foi o inverso, isto é, fixou-se o critério objetivo em um valor máximo.

23 Importante salientar que, para Luiz Regis Prado, deve-se distinguir o chamado “bem jurídico”, da “função” da tutela penal: “[…] não se pode acolher a tese de que a pura e simples função tributária (de arrecadação, por exemplo) seja o bem jurídico protegido no Direito Penal Tributário, por sua incapacidade de cumprir a função de garantia que se atribui ao bem jurídico, ou, de outra forma, ‘em sua capacidade de pôr em perigo dita função de garantia’, o que pode levar ao esvaziamento do sentido real da proteção jurídica, e converter os tipos penais em pura infração de dever” (Prado, 2007, p. 261).

24 O Decreto n. 972/2003 aprovou o texto da Convenção para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Imposto de Renda, Prevenir e Combater a Evasão Fiscal e sobre Matérias Aduaneiras, celebrada entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Paraguai, em 20 de setembro de 2000.

25 Na prática, nota-se que há situações em que determinados fatos são enquadrados como descaminho, mas há desobediência a outras normas de comércio exterior, além da ilusão tributária. De qualquer forma, no caso de ocorrer somente esta, se o montante tributário for inferior à isenção fiscal, estaremos, de fato, diante de uma atipicidade do delito e não de aplicação do princípio da insignificância.

26 Disponível em <https://www.pgr.mpf.gov.br>. Acesso em: 9 jan. 2008. No mesmo sentido: “Processo 1.21.000.000086/2008-51 (2693 – je), relator(a) subprocuradora-geral da República Ana Maria Guerrero Guimarães, voto-vista subprocuradora-geral da República Julieta E. Fajardo Cavalcanti de Albuquerque. Ementa voto-vista: “A fim de se evitar tautologia, adoto o relatório de fls. 34/35. De acordo com a Instrução Normativa nº 538 da Secretaria da Receita Federal, a qual entrou em vigor na data da sua publicação no DOU de 22.04.2005, o limite de isenção tributária para as compras feitas em território estrangeiro é de ‘U$$ 300,00 (trezentos dólares dos Estados Unidos) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via terrestre, fluvial ou lacustre’. Na hipótese em comento, constata-se que o investigado detinha a posse de mercadorias no valor de R$ 405,00 (quatrocentos e cinco reais), quantia esta inferior ao limite de isenção de U$$ 300,00 (trezentos dólares americanos) à época dos fatos. Portanto, em razão da não extrapolação do limite de isenção estabelecido pela referida Instrução Normativa, bem como porque as mercadorias não apontam destinação comercial e não há nos autos notícia de habitualidade delitiva em crime da mesma natureza, divergindo da Ilustre Relatora Dra. Ana Maria Guerrero Guimarães, ‘data venia’, voto pela insistência no pedido de arquivamento, nos termos da manifestação do il. Membro do “Parquet” oficiante (fls. 02/05)”.

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