O silêncio e a mentira dos acusados no Direito Processual Penal

publicado 22/05/2020 15h00, última modificação 22/05/2020 16h33

Por José Lucas Perroni Kalil*

Resumo: Desde o advento da Constituição Federal de 1988, a interpretação do princípio nemo tenetur se detegenere, capitaneada pela Suprema Corte Brasileira, tem sido feita de maneira míope e equivocada, partindo de falsas premissas, chegando a falsas conclusões, em detrimento do interesse público, isentando de quaisquer consequências processuais o silêncio ou a falta da verdade pelo acusado. 

Palavras-chaves: Direito de não se autoincriminar. Limites. Interpretações equivocadas do texto constitucional.

The silence and the lie in the criminal procedural law

 Abstract: Since the advent of the 1988 Brazilian Bill of Rights, the principle nemo tenetur se detegenere is being misinterpreted, leaded by brazilian Federal Supreme Court. It’s used false premises, which leads to false conclusions, all against public interest, freeing of any processual consequences when the defendant silences or lies to the judge.

Keywords: Self-incrimination. Limits. Wrong interpretations from the constitucional text.

 

1. Sobre o silêncio dos acusados 

O art. 5º, LXIII da Constituição estipula que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

O presente artigo possui o escopo de estudar as origens, os alcances e limites desse direito de “permanecer calado”, o qual, lamentavelmente, teve sua interpretação hipertrofiada pelos legisladores infraconstitucionais e operadores do direito. 

Pois bem. De acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira e Douglas Fischer, nemo tenetur se detegere constitui um “aforismo renascido (data do século XVII, no direito inglês) no pós-iluminismo, emblemático de uma era de transformação na teoria do processo e, sobretudo, no âmbito do processo judicial criminal, já no século XIX”[2]. A inspiração imediata mais óbvia desse dispositivo é a Quinta Emenda da Constituição Norte-Americana. Mas, mesmo no direito americano, o direito ao silêncio não é absoluto. Percebamos o teor do texto estrangeiro: 

“No person (...) shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself” 

O termo ‘compelled’, muito facilmente traduzido para o correspondente no vernáculo como ‘compelido’, indica que o acusado não pode ser compelido a produzir prova contra si. Ou seja, caso o Estado utilize-se de coerção para interrogar o acusado, este pode permanecer em silêncio. Por esta interpretação, que nos parece correta e óbvia, se o Estado não se utiliza de métodos impróprios de interrogatório, o acusado tem o dever de falar. 

A nosso sentir, portanto, e considerando que o texto constitucional anterior não trazia semelhante garantia, talvez no afã de impedir obtenção de confissões mediante tortura, que alegadamente teria sido prática comum no regime anterior à Lei Maior de 1988, tolerou-se o silêncio do acusado em certas circunstâncias. Ressalte-se: nosso texto constitucional não traz nada além de um direito ao preso “de permanecer calado”, em texto muito parecido de como os personagens de Hollywood recitam os Miranda warnings em filmes norte-americanos aos presos em flagrante. Não há maiores detalhamentos, na Constituição, de o que constituiria esse direito. 

Nos Estados Unidos, que, como dissemos, é a origem aparente do dispositivo, trata-se de um direito bastante limitado. Em primeiro lugar, é um direito disponível, uma vez que o acusado deve expressamente evocá-lo. 

Em Salinas v. Texas, decidiu-se que não violava a Quinta Emenda o uso, pela acusação, do silêncio feito pelo acusado que não se encontrava custodiado. Ou seja: permanecer em silêncio em resposta ao interrogatório oficial não está protegido pela Quinta Emenda, salvo se o Estado empregar coerção ou seu equivalente. 

Se a Quinta Emenda americana serviu de inspiração para esses dispositivos legais e/ou para as interpretações que antecederam a eles – e foi, conforme veremos no tópico seguinte -, o que se seguiu em termos de jurisprudência e legislação posterior foi fruto de um conhecimento extremamente raso sobre a Quinta Emenda. 

Especialmente em Salinas v. Texas, tivemos as seguintes regras estabelecidas:

1) o privilégio contra autoincriminação é uma exceção ao princípio geral de que o Governo possui o direito à oitiva de toda e qualquer pessoa (Garner v. United States - 1976)

2) a testemunha que quiser se escudar nesse privilégio deve clamá-lo (United States ex rel. Vajtauer v. Commissioner of Immigration – 1927);

3) o privilégio deve ser justificado, e não uma discricionariedade da parte (Roberts v. United States – 1980);

4) admitiu-se a não evocação do privilégio (i) durante seu próprio julgamento e (ii) quando um acusado estiver sujeito a pressões inerentemente constrangedoras de um interrogatório em custódia sem aviso prévio (Miranda v. Arizona) ou em circunstâncias em que, por algum motivo, invocar o privilégio significa negar ao acusado uma livre escolha de admitir, negar ou recusar a responder. 

Ou seja, a regra geral deveria ser o princípio geral de que o Estado possui o direito de ouvir a versão do acusado, sendo o silêncio uma exceção que deveria ser interpretada pelo juiz caso a caso. 

No Brasil, tem-se entendido que nenhuma consequência pode advir do silêncio do acusado. Mesmo quem parece defender o alcance máximo a esse direito entende implicitamente a incongruência dessa situação: 

“Quaisquer que sejam as razões da escolha (do silêncio), o que importa é que o Estado não estará autorizado a emitir juízo de convencimento sobre ela. (…) O problema no silêncio parcial é que a versão apresentada pelo acusado poderá perder completamente qualquer credibilidade. Pior. Poderá se voltar contra ele, dado que a inconsistência na narrativa, sobretudo, em relação ao tempo e lugar e demais circunstâncias relevantes dos fatos, poderá conduzir até mesmo a uma confissão, indireta, que seja.”[3] 

O motivo para tanto nos parece evidente. Já me deparei, na prática, com a seguinte situação: sujeito estrangeiro, preso por tráfico internacional, alegava ser um mendigo em seu país de origem e que não estaria envolvido de forma alguma com organização criminosa. No entanto, perguntado sobre como um mendigo conseguiu viajar da Europa para a Argentina meses antes, e a finalidade da viagem, preferiu ficar em silêncio. O silêncio, nesse caso, foi muito eloquente quanto ao que não foi respondido. Seria um verdadeiro absurdo o juiz não poder utilizar esse silêncio quando da avaliação da prova. 

É exime de dúvida que o silêncio influencia operador do direito destinatário da prova, seja ele, conforme o momento, o Estado-juiz ou o Estado-acusação. É uma máxima de experiência, tão cara ao processo civil (art. 375 do CPC) e que seria utópico afastar do processo penal. Nesse sentido, irretocável lição de Edilson Mougenot Bonfim: 

“É praticamente unânime na psicologia judiciária penal o entendimento de que depõe contra o acusado, como indício incriminador, o seu silêncio ao ser interrogado. Esse quid de desconfiança do julgador ante o silêncio do réu não é código no mundo que o suprima, como não há lei formal que o institua… é a experienciação irreversível da humanidade que aprendeu, empiricamente, a descobrir e a sentir ‘culpados’ e ‘inocentes’, ainda quando estes nada falam. 
É por isso que ‘ainda creio na lógica, operando sobre dados empíricos e podendo fazê-los decuplamente render’, como proclamado pelo sergipano Tobias Barreto”[4] 

Ou seja, a realidade triunfa sobre a utopia. Com isso em mente, e como no direito brasileiro vige o princípio da persuasão racional, ou do livre convencimento, fere o devido processo legal o juiz ter de esconder parte das razões que o convenceram para evitar uma nulidade do processo. E não é o sistema da persuasão racional nem o devido processo legal o alienígena da equação, mas sim a impossibilidade de uso do silêncio na avaliação da prova. A existência de um direito não significa que o uso desse direito esteja imune de consequências. 

Como se vê, portanto, no direito brasileiro, ao se tornar absoluto e imune a avaliação o direito ao silêncio, estamos diante de um alcance indevido, exagerado e hipócrita de um direito individual, em detrimento e em confronto ao interesse público. 

Trocando em miúdos: o acusado pode sim ter direito ao silêncio (ou a não ser obrigado a depor contra si mesmo)[5]. No entanto, tolher o Estado-juiz ou o Estado-acusação de utilizar esse silêncio em desfavor do réu não possui sentido lógico algum, não resiste a um teste de realidade e não se conhece sistema penal onde o instituto possua o alcance pretendido. 

O cerne do direito ao silêncio é a proteção do indivíduo contra o uso, pelo Estado, de métodos de interrogatórios inadequados, e não um impedimento de uso desse silêncio em matéria probatória. Obviamente, no entanto, uma condenação não poderá ser inferida unicamente do silêncio do acusado, sem qualquer outra prova corroborativa. 

Tendo isso em mente, andou muito mal o legislador infraconstitucional ao introduzir no ordenamento jurídico o texto atual do art. 186 e do inciso II, do art. 478 ambos do Código de Processo Penal: 

“Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. 
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.” 
“Art. 478.  Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: 
(...)
II – ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.” 

O artificialismo desses dispositivos beira a bizarrice e a hipocrisia. O silêncio é sim um indicativo de culpa. Faça o nobre leitor o exemplo empírico de responder qualquer pergunta com a seguinte resposta: “reservo-me ao direito de permanecer em silêncio”. Sempre seu interlocutor presumirá a pior resposta possível. 

Tolher o juiz competente de analisar qualquer condição ou circunstância é revogar o princípio do livre convencimento do juízo e fragilizar o também constitucional devido processo legal. Há aqui um breve retrocesso ao vetusto sistema de provas tarifadas. 

A título de reforço de argumentação, observo que, durante as discussões legislativas, o final do parágrafo único do art. 186 chegou a ostentar a expressões “e tampouco influir no convencimento do juiz”. Essa expressão foi retirada graças a emenda supressiva do então Deputado Luiz Antônio Fleury Filho e nos faz levar a crer que o dispositivo mereça uma interpretação conforme à Constituição, mais próxima à realidade e ao da experiência do direito norte-americano. 

Felizmente ainda persiste no Código de Processo Penal, esquecido mas plenamente vigente, o seu art. 198, com o seguinte e realista teor: 

“Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.” 

Mas como fazer a leitura desses dispositivos infraconstitucionais? A doutrina em geral entende-o revogado tacitamente ou sequer recepcionado pela Constituição[6]. 

No entanto, isso não é verdade. Conforme destacamos en passant alhures, a Constituição apenas defere expressamente ao preso o direito de permanecer calado, o que apenas confirma nossa tese de que o direito ao silêncio se restringe a algumas situações. Vale assinalar que, quando a Constituição quis legar algum direito aos “acusados em geral” e não somente aos “presos”, ela assim foi expressa (art. 5º, LV, da Constituição). 

Não é a toa que a Constituição utilizou o termo “presos” e não ‘acusados em geral” para o direito ao silêncio. Isso porque no famoso precedente “Miranda v. Arizona” a Suprema Corte norte-americana decidiu que pessoas presas estão sujeitas a pressões.

Mesmo assim, seria lícito ao legislador infraconstitucional ampliar o direito ao silêncio aos acusados em geral. Assim como seria lícito restringir esse direito aos presos ou estabelecer outras limitações[7]. O problema reside na impossibilidade forçada de utilização desse silêncio em matéria probatória.

Conforme clássica lição de José Afonso da Silva, citando José Frederico Marques, a garantia do processo legal significa a utilização “de formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais”[8]

Como uma artificialidade, contraria ao interesse público, poderia dar a cada um o que é seu? Ainda mais no processo penal, onde o que se busca é a verdade real, e não uma verdade artificial. Se no processo civil as máximas de experiência são possíveis ao juiz, com mais acerto ainda é que essas máximas sejam utilizadas em nome do princípio da verdade real.

Nosso entendimento, portanto, é no sentido de que conteúdo do direito constitucional ao silêncio resume-se a uma garantia de que (i) o Estado não utilizará de métodos inadequados de interrogatório para extrair a verdade do acusado e (ii) não será suficiente para decreto condenatório - unicamente - o silêncio do acusado, sem outras provas corroboradoras. A não utilização do silêncio em desfavor do réu em matéria probatória trata-se de inovação de estatura infraconstitucional, sendo, inclusive,  inconstitucional, por ferir o devido processo legal, ao obrigar o juiz a não expor todas as razões de seu convencimento.

Além disso, e pelas mesmas razões, com o reforço da expressa previsão do princípio da boa-fé objetiva no novo Código de Processo Civil (art. 5º do CPC c/ art. 3º do CPP), tampouco nos parece lícito ou constitucional a proibição exposta no inciso II do art. 478 do Código de Processo Penal, ao alienar dos jurados qualquer espécie de argumentação, no interesse de quaisquer das partes (no caso, o silêncio do réu).

Como se vê, portanto, o alargamento do direito ao silêncio, que fora constitucionalmente previsto de forma genérica somente aos presos[9], deve receber interpretação conforme a Constituição, de modo a permitir-se o uso do silêncio em matéria probatória. A Constituição veda, na verdade, a utilização do silêncio para a utilização de meios inadequados de interrogatório e também para eventual influência da não colaboração do acusado na dosimetria da pena. Não deveria, por afronta à realidade da lógica e experiência humana, tolher o operador do direito de avaliação da repercussão do silêncio no conjunto probatório, inclusive e especialmente em desfavor de quem se calou. A interpretação conforme deverá vedar a condenação baseada unicamente no silêncio do acusado, sem outras provas. 

Trata-se de uma questão que urge também seja reenfrentada pelo constituinte, pelos legisladores infraconstitucionais e pelos operadores do direito no que pertine à abertura de chaves e senhas de equipamentos apreendidos em práticas delituosas, de modo a permitir perícia forense, existindo movimentações nesse sentido nas principais nações do mundo (ou ao menos onde o combate ao crime e a prevenção de novos delitos sejam de fato uma prioridade).
 

2. Sobre a mentira 

Não satisfeitos com os exacerbados limites do silêncio no direito processual penal pátrio, hodiernamente, esse direito deu passos largos entre os operadores do direito e, atualmente, passou-se a entender lícito, também, em nome da autodefesa do réu, que ele possa faltar com a verdade diante das autoridades policial e judicial. Esse entendimento, no entanto, é, a nosso sentir, ainda mais desacertado. 

Esse entendimento vem do histórico HC 687423/STF. Nele, o Ministro Celso de Mello diz que: 

“o privilégio contra a auto-incriminação traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, deferido e expressamente assegurado, em favor de qualquer indiciado ou imputado, pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política. 
Com o seu expresso reconhecimento, constitucionalizou-se uma das mais expressivas consequências derivadas da cláusula do ‘due processo of law’. 
Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de ‘permanecer calado’. 
Esse direito – que se reveste de valor absoluto – é plenamente oponível ao Estado e aos seus agentes. Atua como poderoso fator de limitação das próprias atividades penais-persecutórias desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes e Tribunais). 
A cláusula constitucional referida consagrou, nesse contexto, o velho postulado – já colhido pela Quinta Emenda do Bill Of Rights norte-americano (1791) – segundo o qual ‘Nemo tenetur se detegere’. 
Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. ‘The right to remain silent’ - consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América em MIRANDA V. ARIZONA (384 U. S. 436) – insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática do ilícito penal. 
Sendo assim, tal circunstância não pode ser considerada por qualquer Juízo ou Tribunal até mesmo por esta Suprema Corte – no processo de fixação de pena.” 

Conforme já se analisou nos parágrafos anteriores, esta decisão está eivada de uma pluralidade de incorreções. Em primeiro lugar, não é verdade que o art. 5º, LXIII, da Constituição dirija-se a todo indiciado ou imputado, mas tão somente aos “presos”. Em segundo lugar, a decisão baseia-se em conhecimento incompleto ou fantasioso do direito norte-americano, no qual, conforme já se disse, o direito ao silêncio não é absoluto, nem tampouco significa permissão para a mentira. 

Conforme Eugênio Pacelli de Oliveira e Douglas Fischer: 

“(no direito anglo-americano), se o réu se dispuser a depor, por vontade própria, será ouvido como testemunha, sob o compromisso de dizer a verdade, podendo até vir a responder por crime de falso testemunho”[10] 

Acórdãos do STF normalmente utilizados para fundamentar tal tese sustentam tratar que o direito de negar a procedência de uma imputação constituiria um direito natural (HC 80616-3). No entanto, seria isso realmente um direito natural? 

Direito natural, na definição de André Franco Montoro, é “constituído pelos princípios que servem de fundamento ao Direito positivo”[11]. No verbete respectivo do Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva, temos o seguinte resumo: 

“As várias escolas filosóficas têm saído a campo para ditar o conceito do Direito Natural, formulando cada uma o sentido admitido, consoante os princípios dominantes em sua filosofia
Nesta razão, mesmo admite-se a expressão Direito Filosófico para indicar igualmente o Direito Natural, em oposição ao Direito Positivo ou Realista
Na acepção do Direito Romano, por Direito Natural (Jus Naturae) entendia-se o Direito Comum a todos os homens e animais, em oposição ao Jus Gentium, que era o Direito Comum a todos os homens. 
Para os escolásticos é o que tem por fundamento a razão divina (Direito Natural Primário), podendo ser completado por homens, por sua legislação e pelos costumes (Direito Natural Secundário), que tomam as formas do Jus Gentium e do Jus Civile
E, nesta acepção, compõe-se das regras de equidade que a razão natural estabeleceu entre os homens, gravada por Deus em seus corações. 
Há, conforme registra EDMOND PICARD, quem o considere como o complexo de direitos imprescritíveis da natureza humana, apresentando-se como uma fração do Direito Positivo que, tomada em sua natureza, não poderá sofrer qualquer alteração normal, salvo por tirania. 
Os enciclopedistas, como é de ver, enfileiram-se na teoria que PICARD nos aponta, aceitando a teoria do Direito Natural fundada na concepção do contrato social de J. J. ROSSEAU, concretizada no sentido individualista do direito, posto em prática pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pugnados pela Revolução Francesa. 
É o conceito fundado no princípio da liberdade individual, que deve ser regulada pelos costumes e por um conjunto de formalidades, imutáveis, terenas, desde que se mostrem na sua suprema e derradeira expressão. 
Há outras teorias. Mas, no sentido moderno, o Direito Natural é tido como o que decorre de princípios impostos à legislação dos povos cultos, fundados na razão e na equidade, para que regulem e garantam os direitos individuais, tais como os de vida, de liberdade, de honra e de todos os direitos patrimoniais, que asseguram a própria existência do homem.”[12] 

Com a devida vênia, seja por qual versão do direito natural se entenda, chega até a soar como um insulto o posicionamento de que constituiria a mentira do acusado um direito natural. 

Historicamente o falso juramento de inocência poderia resultar numa mão decepada[13]. 

Hodiernamente, em outros países (os “povos cultos”), comportamentos quetais chegam até mesmo a configurar delito autônomo (perjúrio, obstrução de justiça ou mesmo falso testemunho). Para nós, a tese do direito natural parece-nos mais uma jabuticaba do direito pátrio e uma falsa premissa, que conduz a uma conclusão também falsa. Como pode-se dizer constituir um direito natural algo que é uma inovação? Adotar a mentira como forma de defesa válida e imune sanções - nem mesmo na dosimetria da pena –, portanto, é algo que somente é admitido no Brasil e apenas confirma a máxima atribuída a Charles de Gaulle de que “le Brésil n’est pas un pays serieux”. 

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem sequer contempla expressamente o direito ao silêncio[14]. O que dizer então da mentira? 

A mentira é fato juridicamente relevante que deve sim ser valorada pelo operador do direito, em regra em desfavor àquele que a profere. Mentir não pode ser considerado ético, para qual finalidade que seja. 

A solução, portanto, condizente com o que a ordem pública, o bom senso e a lógica estão a exigir é (i) tolerar o silêncio, mas dar certa liberdade ao operador do direito a interpretá-lo inclusive e especialmente em desfavor do réu e (ii) sancionar a mentira do acusado como circunstância judicial da pena, diante da constatação de sua personalidade mendaz, salvo se configurar crime mais grave (a exemplo dos delitos de denunciação caluniosa, falsa comunicação de crime, autoacusação falsa, etc.).

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*Procurador da República em Jundiaí.
[2]     OLIVEIRA. Eugênio Pacelli e outro. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2014, p. 395
[3]     OLIVEIRA. Eugênio Pacelli e outro. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2014, p. 399/400. Em outros termos: “Dado doutrinal pacífico sobre o direito ao silêncio indica, igualmente, que ao acusado é dado escolher entre uma intervenção ativa e o direito ao silêncio, mas, tendo optado pela postura ativa, o eventual regresso para uma opção em favor do direito ao silêncio não mais poderá ser considerado” (MENDES, Gilmar Ferreira Mendes e outro. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 577)
[4]     BONFIM, Edílson Mougenot.  Júri: do inquérito ao plenário, 5ª edição, São Paulo, Saraiva Educação, 2018, Versão e-book 
[5]     Conforme art. 8º, 2, g, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
[6]     OLIVEIRA. Eugênio Pacelli e outro. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2014, p. 419
[7]     Nesse mesmo sentido, Gilmar Ferreira Mendes: “Como se cuida de direito fundamental com âmbito de proteção normativo, não está o legislador impedido de adotar providências com intuito de dar-lhe adequada conformação, tendo em vista os objetivos que marcam o instituto do direito ao silêncio no seu desenvolvimento histórico e sua instrumentalidade, no contexto do direito ao contraditório e à ampla defesa” (MENDES, Gilmar Ferreira Mendes e outro. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 577).
[8]     SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, São Paulo, 2006, 27ª edição, p. 432
[9]     Expandida a “toda pessoa acusada de delito” pela Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (art. 8º, 2, g, CIDH c/c art. 5º, §3º, da CF c/c Decreto Legislativo n.º 27/1992)
[10]   OLIVEIRA. Eugênio Pacelli e outro. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2014, p. 400
[11]   MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito – edição 2016, versão e-book

[12]   SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, 30ª edição, Rio de Janeiro, Forense, p. 483
[13]   FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo, Estação Liberdade, 2004, p. 333

[14]   Embora a corte europeia tenha entendido existir o direito ao silêncio (Doutrina Murray)

Referências

BONFIM, Edílson Mougenot.  Júri: do inquérito ao plenário, 5ª edição, São Paulo, Saraiva Educação, 2018, Versão e-book
FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo, Estação Liberdade, 2004
MENDES, Gilmar Ferreira Mendes e outro. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 577
MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito – edição 2016, São paulo, RT, versão e-book
OLIVEIRA. Eugênio Pacelli e outro. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. Atlas, São Paulo, 6ª edição, 2014
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico, 30ª edição, Rio de Janeiro, Forense, p. 483
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, São Paulo, 2006, 27ª edição, p. 432

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