As medidas jurídicas adotadas no Brasil durante a pandemia da COVID-19 e seus reflexos no sistema prisional

publicado 21/05/2020 17h34, última modificação 21/05/2020 17h34

Por Anna Karoline Cavalcante Carvalho* e Victor Soares Nunes**

A pandemia da COVID-19 exigiu do Estado e suas instituições repostas rápidas e eficazes no que concernem medidas sanitárias e de isolamento social. No cárcere, há uma peculiaridade considerando o Estado de Coisas Inconstitucional reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, conforme voto do  Ministro Marco Aurélio, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347: 

no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as ‘masmorras medievais (STF, 2016) 

Diante do respectivo cenário, o Conselho Nacional de Justiça  reagiu  à situação de pandemia, mediante a Recomendação n.62, que visa a preservação de Direitos Humanos, a fim de evitar o caos na saúde pública brasileira, bem como, preservar a vida de indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade, tais como o reeducandos. A recomendação traz orientações ao Judiciário em cinco principais frentes: redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; suspensão excepcional da audiência de custódia, mantida a análise de todas as prisões em flagrante realizadas; ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas.

O texto considera que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade, especialmente devido à situação de confinamento e superlotação nos presídios brasileiros, é essencial para a garantia da saúde coletiva e da segurança pública. Destaca, ainda, a importância da adoção de medidas para zelar pela saúde dos profissionais que atuam no sistema de justiça penal e socioeducativo enquanto se mantém a continuidade da prestação de Justiça. (CNJ, 2020)

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo conforme a recomendação do CNJ, a exemplo da decisão  do  Ministro Paulo de Tarso Sanseverino do STJ que decidiu, no dia 27 de março de 2020, garantir a todos os presos, por inadimplemento de obrigação alimentar, o cumprimento da prisão em regime domiciliar. Tal medida fez-se necessária  em razão do avanço exponencial da  pandemia de covid-19. 

Ante a situação emergencial em saúde pública, vários institutos jurídicos começaram a ser questionados, bem como, a forma de execução da pena.  Nesse último caso citado, o Ministro ressaltou que as condições de cumprimento da prisão domiciliar serão estipuladas pelos juízos de execução de alimentos, inclusive em relação à duração, levando em conta as medidas adotadas pelo Governo Federal e local para conter o contágio em massa. 

No âmbito da execução penal, são diversas as críticas aos procedimentos adotados durante a pandemia, no que tange, por exemplo, a suspensão dos julgamentos do tribunal do júri que poderá deixar réus  presos além do período limite previstos em lei. Nesse aspecto, ficamos diante de questionamentos que orbitam em torno de possíveis adaptações para continuidade do rito processual penal, com vistas a evitar prejuízos irreversíveis para o réu. 

A proibição de visitas em alguns estados tem ocasionado diversos reflexos na rotina dos presidiários tais como a dificuldade no  acesso a alimentos, medicamentos, higiene, entre outros. A  recomendação do CNJ em análise  determina a revisão de processos que envolvam cumprimento de penas em regimes semi-abertos e fechados, mas deixa a cargo de cada  magistrado executar essa função, fato esse que possibilita que os juízes de execução penal ajam de forma passiva, analisando apenas casos que cheguem em seus gabinetes por intermédio  de pedidos formais em cada processo, situação essa que faz com que o agente público responsável pelo cumprimento da pena esteja distante da atual realidade do sistema prisional brasileiro. Ademais, insta ressaltar que  o elevado quantitativo de indivíduos em cumprimento de penas restritivas de liberdade, frente ao número de varas de execução penal no país   dificultam  ainda mais a execução da referida medida caso a caso, situação que torna inviável as respectivas análises em tempo razoável.

De pronto a Recomendação trouxe respostas à COVID, embasada em diversas normativas ela prevê a execução de direitos fundamentais dos presos em que normativas já consolidadas no sistema jurídico brasileiro já preveem como a LEP. Sabemos que o Conselho Nacional de Justiça não legisla, apenas recomenda o que já está positivado, nesse sentido, discute-se a necessidade de tal ato, pois os juízes têm função institucional de serem garantidores do sistema contra violações ou ameaças a direitos fundamentais, passando a tutelar não somente a estrita formalidade, mas todo o conteúdo previsto na Constituição, em busca de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. 

Segundo Greco (2008, p.11), 

 A magistratura, segundo a concepção garantista de Ferrajoli, exerce papel fundamental, principalmente no que diz respeito ao critério de interpretação da lei conforme a Constituição. O juiz não é mero aplicador da lei, mero executor da vontade do legislador ordinário. Antes de tudo, é o guardião de nossos direitos fundamentais. Ante a contrariedade da norma com a Constituição, deverá o magistrado, sempre, optar por esta última, fonte verdadeira de validade da primeira.

De outro lado, pode-se observar a Recomendação do CNJ como um instrumento dotado de força para a garantia dos direitos fundamentais constitucionais, que ganham ainda relevância diante da pandemia da COVID-19 e de todo esforço institucional para evitar generalizadas mortes. Ferrajoli (2006, p.786) diz que: 

Uma Constituição pode ser muito avançada em vista dos princípios e direitos sancionados e não passar de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas, ou seja, de garantias, que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo.  

A reavaliação de prisões provisórias, reavaliação de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, para fins de eventual substituição por medida em meio aberto, suspensão ou remissão,  todas as medidas recomendadas não serão aplicadas à todos automaticamente, pois se sabe as limitações dos juízes frente a quantidade de processos, nesse sentido, até que ponto tal medida será aplicada. Nessa esteira, é evidente as limitações técnicas-jurídicas para a garantia à integridade física dos presos diante da pandemia instalada.

Não se trata aqui de proteção da impunidade ou o apoio a uma mentalidade que termina por favorecer o banditismo, a corrupção e a impunidade de toda sorte de criminosos. Mas, de garantir os direitos fundamentais que estão guardados à todos cidadãos, positivados em nossa Constituição, aos presos cabe cumprir a execução de sua pena, mas não de cumprir sua a pena a qualquer custo, pois tem o direito de executá-las com condições mínimas, senão estaríamos diante de um arbítrio punitivista do Estado.

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* Anna Karoline Cavalcante Carvalho, Estagiária do MPF-TO .
** Victor Soares Nunes, Advogado.

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