Lei n. 12015/2009: as consequências jurídicas da nova redação do artigo 213 do Código Penal brasileiro

Anderson Cavichioli

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Sumário: 1 Introdução. 2 A dignidade sexual como projeção da dignidade da pessoa humana. 3 A revogação do artigo 214 do Código Penal brasileiro pela Lei n. 12.015/2009: hipótese de abolitio criminis? 4 As consequências da previsão legal dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva sob a denominação estupro: possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, desde que preenchidos os requisitos do artigo 71, caput, do CP. 5 A unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva caracteriza crime único? 6 O caráter mais benéfico ao réu trazido da Lei n. 12.015/2009: a retroatividade. 7 Os requisitos para o reconhecimento da continuidade delitiva na hipótese de vários crimes de estupro: a nova redação do artigo 213 do Código Penal brasileiro. 8 Conclusões.

1 Introdução


A Lei n. 12.015, de 7.8.2009 (DOU de 10.8.2009) trouxe importantes alterações ao ordenamento penal pátrio.

O objetivo do presente estudo não é abranger todas as mudanças trazidas pelo novo diploma legal, mas analisar as consequências jurídicas decorrentes da novel lei em relação à nova redação do artigo 213 do Código Penal brasileiro e à revogação do artigo 214 do mesmo diploma legal, que estabelecia os contornos do delito de atentado violento ao pudor.

 

2 A dignidade sexual como projeção da dignidade da pessoa humana


As mudanças trazidas pela Lei n. 12.015/2009 iniciam-se com a alteração da denominação do Título VI do Código Penal brasileiro, abandonando-se a designação “Dos crimes contra os costumes” e adotando-se o título “Dos crimes contra a dignidade sexual”.

Percebe-se que não se trata de mero ajuste de nomenclatura destituído de relevância prática, pois a alteração traduz, antes de tudo, a preocupação do legislador com a dignidade sexual, como projeção da própria dignidade da pessoa humana, erigida a epicentro de todo o ordenamento jurídico.

A expressa alusão a um dos aspectos da dignidade humana (dignidade sexual) na abertura do Título VI do Estatuto Repressivo brasileiro tem o condão de condicionar a interpretação das alterações trazidas pela novel lei à observância da dignidade humana como valor ético irredutível, merecedor de adequada e efetiva tutela estatal.

O valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico e, em sua projeção na seara da liberdade sexual (faculdade de livre eleição do(a) parceiro(a) sexual), como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema normativo penal.

Para Flávia Piovesan:

É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa da interpretação normativa. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e o Direito Interno1.

Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana é condicionante da interpretação de qualquer norma integrante do ordenamento jurídico, inclusive as normas de caráter penal.

Pode-se afirmar que a ideia de dignidade humana traz em si a noção de respeitabilidade condicionada apenas e tão-somente à qualidade de pessoa, rejeitando qualquer outro condicionamento, razão pela qual a norma penal deve ser interpretada à luz deste vetor axiológico, para tutelar efetivamente o bem jurídico dignidade sexual.

 

3 A revogação do artigo 214 do Código Penal brasileiro pela Lei n. 12.015/2009: hipótese de abolitio criminis?

A Lei n. 12.015, de 7.8.2009, em seu artigo 7º2, revogou o artigo 214 do Código Penal brasileiro, que previa a figura típica do atentado violento ao pudor, mas incorporou a conduta então prevista no referido dispositivo ao artigo 213 do Estatuto Penal, sob o nomen iuris estupro, passando o referido artigo de lei a dispor:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

A primeira indagação que se coloca é se houve abolitio criminis.

Como é cediço, há abolitio criminis quando determinada conduta, então prevista no ordenamento jurídico como crime, deixa de sê-lo.

Pertinente se revela a lição de Alberto Silva Franco3:

Cuida-se da hipótese de supressão da figura criminosa, por ter o legislador considerado que a ação, antes prevista como delituosa, não é mais idônea a ferir o bem jurídico, que pretende tutelar. Com a descriminalização do fato, não teria sentido nem o prosseguimento da execução da pena, nem a mantença das seqüelas penais da sentença condenatória.

Cláudio Brandão4, por seu turno, registra:

É certo que o Direito Penal não escapa à Teoria Geral do Direito, já que suas normas também podem ser revogadas e o instituto da dogmática penal que trata da revogação da norma penal é chamado abolitio criminis. Cuida esse instituto da revogação de uma incriminação penal por uma lei posterior que não mais considere o fato como criminoso, o que traz como conseqüência a cessação de todos os efeitos penais decorrentes do fato revogado, extinguindo-se a punibilidade.

Diante do artigo 7º da Lei n. 12.015/2009 cabe indagar se a conduta então descrita no artigo 214 do Código Penal pátrio deixou de ser crime.

A resposta é negativa, pois, apesar da revogação do mencionado artigo 214, vê-se que o ordenamento penal continua a prever a conduta nele descrita como conduta penalmente relevante, todavia, agora, no bojo do artigo 213 do Estatuto Repressivo, que sofreu alteração em sua redação para albergá-la.

Em outros termos, apenas poder-se-ia falar em abolitio criminis na hipótese de a lei deixar de prever como crime a conduta consistente em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir a prática com o agente de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, o que efetivamente não ocorreu.

Vale dizer, não ocorreu qualquer solução de continuidade quanto à previsão da conduta prevista no derrogado artigo 214 do Código Penal brasileiro como crime, apenas havendo sua incorporação ao novel artigo 213 do mesmo diploma legal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 12.015/2009.

Portanto, a primeira conclusão é que não houve abolitio criminis.

 

4 As consequências da previsão legal dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva sob a denominação estupro: possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, desde que preenchidos os requisitos do artigo 71, caput, do CP

 

O Código Penal brasileiro tratava em figuras delitivas diversas os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Confira-se:

Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena – reclusão, de seis a dez anos.

 

Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena – reclusão, de seis a dez anos.

Todavia, a Lei n. 12.015, de 7.8.2009, unificou as duas condutas em uma mesma figura delitiva, agora prevista no novel artigo 213 do Estatuto Repressivo pátrio, que passou a dispor:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Anteriormente à alteração legislativa acima mencionada, havia forte corrente jurisprudencial, mormente formada no âmbito dos tribunais superiores, no sentido do não reconhecimento de continuidade delitiva entre os crimes de estupro (CP, art. 213) e atentado violento ao pudor (CP, art. 214) quando os atos libidinosos caracterizadores deste último não configurassem praeludia coiti, ainda que perpetrados contra a mesma vítima, ensejando, portanto, a caracterização de concurso material (CP, art. 69).

Neste sentido a jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça:

[...] 1. Não se consubstanciando os atos libidinosos em praeludia coiti, ocorre crime de atentado violento ao pudor em concurso material com o estupro, não podendo, dessa forma, ser aplicada a regra insculpida no art. 71 do Código Penal, por serem crimes de espécies diversas. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e desta Corte.5

 

[...] II – Se, além da conjunção carnal, é praticado outro ato de libidinagem que não se ajusta aos classificados de praeludia coiti, é de se reconhecer o concurso material entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor. A continuidade delitiva exige crimes da mesma espécie e homogeneidade de execução. Ordem denegada.6

No mesmo sentido, o seguinte aresto do Pretório Excelso, que reflete a jurisprudência dominante na Corte:

[...] 1. Esta corte já teve oportunidade de solucionar a questão controvertida na esfera doutrinária, podendo ser colacionados julgados no sentido de que "não há falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor" (HC n. 70.427/RJ, Ministro Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ 24.9.1993), ainda que "perpetrados contra a mesma vítima" (HC n. 688.77/RJ, Relator Ministro Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ 21.2.1992). 2. Além disso, consoante se depreende da sentença condenatória, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor foram cometidos contra duas filhas menores do paciente, ou seja, contra vítimas diferentes, havendo, portanto, completa autonomia entre as condutas praticadas. 3. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.7

Nota-se que a referida orientação jurisprudencial não reconhece a continuidade delitiva entre o estupro (então caracterizado apenas pela conjunção carnal) e o atentado violento ao pudor, este integrado pelos demais atos libidinosos diversos da conjunção carnal que não configurarem praeludia coiti.

Deve-se esclarecer que conjunção carnal é a cópula vagínica. Ato libidinoso diverso, por seu turno, é qualquer ato de cunho sexual, diverso da penetração do pênis na vagina, tendente à satisfação da lascívia, como sexo anal, fellatio in ore (sexo oral), coito vestibular (em que o agente encosta e/ou roça a glande do pênis na vulva ou nos lábios vaginais; é o coitus inter femora), apalpação nas partes íntimas da vítima, penetração dos dedos ou com objetos, entre outros, a configurar o injusto do atentado violento ao pudor (então previsto no revogado artigo 214 do Código Penal).

Os atos acima mencionados não consubstanciam praeludia coiti, que são aqueles que fazem parte da ação física do delito de estupro em sua acepção anterior à alteração legislativa sob análise.

Vale transcrever os seguintes esclarecimentos doutrinários8:

32. Diversidade da conjunção carnal: tendo em vista que conjunção carnal é a cópula vagínica, todos os demais atos que servem à satisfação do prazer sexual são considerados libidinosos, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução na vagina dos dedos ou de outros objetos, dentre outros. Quanto ao beijo, excluem-se aqueles que forem castos, furtivos ou brevíssimos, como os dados na face. Incluem-se os beijos voluptuosos, como 'longa e intensa descarga de libido', como menciona Hungria, dados na boca.

33. Distinção entre atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor: em se tratando de crime hediondo, sujeito a uma pena mínima de seis anos, a ser cumprida em regime integralmente fechado9, não se pode dar uma interpretação muito aberta ao tipo do art. 214. Portanto, atos ofensivos ao pudor, como passar a mão nas pernas da vítima, devem ser considerados uma contravenção penal e não um crime. A este é preciso reservar o ato realmente lascivo, que sirva para satisfazer a ânsia sexual do autor, que se vale da violência ou da grave ameaça. Além disso é preciso considerar o tempo utilizado para atingir os propósitos do agente. Uma breve passada de mãos no seio da vítima, fugaz e de inopino, não nos parece seja um atentado violento ao pudor, mas uma importunação ofensiva ao pudor. Diferente do sujeito que se detém nas carícias, ameaçando a vítima com um revólver, por exemplo. Neste último caso, trata-se do delito previsto no art. 214.

Após a Lei n. 12.015/2009, as condutas anteriormente integradas em tipos penais distintos foram reunidas em uma única figura delitiva, impondo-se reconhecer que, agora, são crimes da mesma espécie.

Convém registrar o que ensina a doutrina10 acerca do significado da expressão “crimes da mesma espécie”:

Várias posições foram ganhando corpo ao longo dos anos, sendo que duas merecem destaque, porque principais.

A primeira posição considera como crimes da mesma espécie aqueles que possuem o mesmo bem jurídico protegido, ou na linha de raciocínio de Fragoso, “crimes de mesma espécie não são apenas aqueles previstos no mesmo artigo de lei, mas também aqueles que ofendem o mesmo bem jurídico e que apresentam, pelos fatos que os constituem ou pelos motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns”. Assim, furto e roubo, estupro e atentado violento ao pudor seriam da mesma espécie. A segunda posição aduz que crimes da mesma espécie são aqueles que possuem a mesma tipificação penal, não importando se simples, privilegiados ou qualificados, se tentados ou consumados.

[...] Ao contrário, portanto, da posição anterior, para esta não poderia haver continuidade entre furto e roubo, entre estupro e atentado violento ao pudor, uma vez que tais figuras encontram moldura em figuras típicas diferentes.

Portanto, vê-se claramente que predominava na jurisprudência pátria o entendimento, também adotado por parcela da doutrina, no sentido de que estupro e atentado violento ao pudor, por não serem crimes da mesma espécie, eis que não previstos no mesmo tipo penal, ensejariam eventualmente o reconhecimento de concurso material.

Todavia, após a alteração legislativa trazida pela Lei n. 12.015/2009, qualquer que seja a concepção doutrinária acerca da expressão “crimes da mesma espécie”, não remanesce dúvida de que “estupro” e “atentado violento ao pudor”, agora, integram a mesma figura delitiva, estão previstos no mesmo tipo penal e atentam contra o mesmo bem jurídico, sendo, pois, crimes da mesma espécie, permitindo, desde que preenchidos os requisitos do artigo 71, caput, do Código Penal brasileiro, possa ser reconhecida a continuidade delitiva e afastado o concurso material.

Convém não se olvidar que a continuidade delitiva poderá ser reconhecida apenas e tão somente se estiverem presentes os requisitos previstos no referido artigo 71, caput, do Estatuto Penal.

O que se pretende afirmar é que não se pode mais, diante da inovação trazida pela Lei n. 12.015/2009, afastar a possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor, agora denominado estupro, apenas sob o argumento de não serem crimes de mesma espécie.

Entretanto, isso não significa afirmar que sempre haverá continuidade delitiva; seu reconhecimento dependerá da presença de todos os requisitos elencados no artigo 71, caput, do Estatuto Repressivo pátrio e não apenas de se tratar de crimes de mesma espécie.

 

5 A unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva caracteriza crime único?

 

A previsão no mesmo tipo penal do crime de estupro e do revogado atentado violento ao pudor trouxe questão de alta indagação, consistente em saber se constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal e, na mesma situação, a praticar ou permitir que com o agente se pratique outro ato libidinoso, configura crime único ou, por outro lado, se há vários crimes praticados em continuidade delitiva.

Em outros termos, após a Lei n. 12.015/2009, é preciso perquirir se a prática de conjunção carnal e outros atos libidinosos, na mesma oportunidade, contra uma única vítima, caracteriza crime único ou vários crimes cometidos em continuidade delitiva.

A tese de crime único não merece acolhida, eis que seu reconhecimento dependeria de conceber o crime previsto no artigo 213 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 12.015/2009, como crime de ação múltipla ou de conteúdo variado.

Todavia, percebe-se que o novel tipo penal traz em sua estrutura apenas um núcleo verbal (constranger). Cuida-se de tipo uninuclear. Portanto, não se pode concebê-lo como crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, em que a realização de mais de um verbo contido no tipo configura um único crime.

Deve-se registrar, ainda, que, a prosperar o entendimento de existência de crime único, ter-se-ia um verdadeiro estímulo à potencialidade ofensiva do agente em detrimento da vítima, pois, a título exemplificativo, poderia o agente constrangê-la a com ele manter conjunção carnal e, após, no mesmo contexto, também constrangê-la a praticar ou permitir a prática de outro ato libidinoso ou vice-versa, sem que houvesse repressão proporcionalmente mais gravosa.

Conforme salientado no início deste trabalho, a expressa alusão a um dos aspectos da dignidade humana (dignidade sexual) na abertura do Título VI do Código Penal brasileiro tem o condão de condicionar a interpretação das alterações trazidas pela novel lei à observância da dignidade humana como valor ético irredutível, merecedor de adequada e efetiva tutela estatal, que estaria gravemente comprometida pela adoção da tese do crime único.

Tendo em vista que a norma penal elegeu a liberdade sexual como bem jurídico digno de tutela, não se pode conceber qualquer interpretação que retire da norma penal seu aspecto teleológico fundamentado na adequada e proporcional resposta a qualquer ato que se afigure atentatório à dignidade sexual.

Vale registrar a seguinte passagem doutrinária11:

Todo Direito penal fundado na pena de prisão, que retira do agente do fato (ou lhe restringe ou lhe ameaça) o direito fundamental da liberdade, não se justifica senão quando o fato desse agente afeta concreta e gravemente (lesão ou perigo de lesão) um bem jurídico de elevada relevância (digno de proteção, merecedor de proteção). A afetação concreta e grave (intolerável de um bem jurídico relevante (digno de proteção) é, portanto, condição sine qua non do ius poenale do ius libertati (do Direito penal da liberdade), isto é, sua ratio essendi.

Se a liberdade é um bem jurídico de extremada relevância, sua eliminação ou restrição ou ameaça só se justifica quando o agente do fato, com sua conduta, tenha ofendido concreta e gravemente (lesão ou perigo concreto) bem jurídico de igual ou similar importância. O princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) não autoriza nenhuma afetação desponderada ou desarrazoada do direito fundamental da liberdade.

O legislador, ao prever as condutas descritas no artigo 213 do Código Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 12.015/2009, elegeu a liberdade sexual, sob o aspecto de projeção da dignidade sexual, como bem jurídico de elevada importância.

Portanto, eventual interpretação que enxergasse no referido dispositivo de lei crime único violaria o princípio da dignidade da pessoa humana e sua projeção na tutela da liberdade sexual, além de malferir o princípio da individualização da pena previsto no Texto Maior, indubitavelmente dirigido ao legislador12, mas também ao intérprete e aplicador da norma, conforme assentado pelo Pretório Excelso no julgamento do HC n. 82.959/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJU de 1º set. 2006.

Na clássica lição de Alexy (1993, p. 88), “os princípios são mandados de otimização, que podem ser cumpridos em diferentes graus. São compatíveis com diferentes graus de concretização, dependendo dos condicionamentos fáticos e jurídicos”.

Com efeito, impõe-se, na hipótese, interpretação conforme a Constituição, para afastar a configuração de crime único na novel previsão do artigo 213 do Código Penal brasileiro, compatibilizando o referido tipo penal com os princípios da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena, imprimindo-lhes adequado grau de concretização, capaz de tutelar efetivamente o bem jurídico protegido pela norma, com a aplicação de reprimendas diversas conforme a gravidade das condutas delitivas perpetradas.

Vale dizer, não se pode conceber que réu que constranja, num mesmo contexto, uma única vítima a praticar conjunção carnal e praticar ou permitir que com ele se pratique outros atos libidinosos possa ser apenado da mesma maneira que aquele que realiza apenas a conjunção carnal ou, ainda, apenas outro ato libidinoso.

As situações, evidentemente, apresentam gravidades diversas e demandam respostas penais proporcionalmente diferentes.

Em outros termos, no caso de, na mesma oportunidade, ser a vítima constrangida a praticar conjunção carnal e a praticar ou permitir a prática de outros atos libidinosos, a tese do crime único não pode prosperar, pois o princípio da dignidade sexual, corolário da tutela constitucional da dignidade da pessoa humana e o princípio da individualização da pena impõem que a resposta penal seja proporcional à violação do bem jurídico tutelado pelo ordenamento pátrio, de forma que a liberdade sexual seja, de fato, objeto da efetiva proteção do Estado.

Em conclusão, caso o agente pratique, no mesmo contexto, contra uma única vítima, conjunção carnal e outros atos libidinosos, responderá por dois estupros em continuidade delitiva, desde que presentes os demais requisitos autorizadores do reconhecimento do instituto. Ausentes tais requisitos, haverá concurso material. Jamais, porém, um único crime.

 

6 O caráter mais benéfico ao réu trazido da Lei n. 12.015/2009: a retroatividade

 

Tendo em vista a possibilidade, em tese, desde que preenchidos os requisitos do artigo 71, caput, do Estatuto Penal brasileiro, de reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, este último agora incorporado à figura delitiva do artigo 213 do Código Penal, todos sob a denominação “estupro”, há de se reconhecer o caráter mais benéfico da alteração legislativa trazida pela Lei n. 12.015/2009, pois o concurso material (CP, art. 69) impõe a soma de penas, enquanto a continuidade delitiva (em sua forma simples) enseja a aplicação da pena de um só dos crimes, se idênticas (como ocorre no caso de estupro e atentado violento ao pudor – reclusão de 6 a 10 anos), aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).

Repercutindo (??) a lei sobre a pena a ser aplicada, é indubitável o seu caráter substantivo, conforme não deixa dúvidas o seguinte julgado do Pretório Excelso:

As normas que impõem pena e a forma de sua execução têm a mesma natureza, são normas de direito substantivo; as penas e os regimes de seus cumprimentos vêm disciplinados no Código Penal. [...] Em se tratando de norma de direito material, aplica-se-lhe o princípio constitucional consagrado no inciso XL do artigo 5º: a lei penal superveniente não retroagirá, salvo se for para beneficiar o réu.13

Dessa forma, forçoso concluir que a Lei n. 12.015/2009, ao unificar as condutas de estupro e atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva, denominada estupro, possibilitando, assim, o reconhecimento de continuidade delitiva, desde que preenchidos os requisitos do instituto, é norma penal mais benéfica (novatio legis in mellius), razão pela qual deve ser aplicada retroativamente, nos termos preconizados pelo artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 198814 e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal brasileiro15.

A competência para aplicar a referida lei depende do estágio em que se encontra o processo, não sendo impeditivo à aplicação retroativa da lei o trânsito em julgado da sentença penal condenatória na qual, presentes os requisitos do artigo 71, caput, do Código Penal, não se reconheceu a continuidade delitiva, hipótese em que caberá ao Juízo das Execuções Criminais, de ofício ou mediante provocação, aplicar a novel lei mais benéfica, consoante determina o artigo 66, inciso I, da Lei n. 7.210/198416 (Lei de Execução Penal).

 

7 Os requisitos para o reconhecimento da continuidade delitiva na hipótese de vários crimes de estupro: a nova redação do artigo 213 do Código Penal brasileiro

 

Dispõe o artigo 71 do Estatuto Repressivo pátrio:

Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Parágrafo único – Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

Cumpre, antes de tudo, compreender o instituto e suas finalidades. A doutrina17 registra sua origem:

O crime continuado deve sua formulação aos glosadores (1100 a 1250) e pós-glosadores (1250 a 1450) e teve suas bases lançadas efetivamente no século XVI, com a finalidade de permitir que os autores do terceiro furto pudessem escapar da pena de morte. Os principais pós-glosadores, Jacobo de Belvisio, seu discípulo Bartolo de Sassoferrato e o discípulo deste, Baldo Ubaldis, foram não só os criadores do instituto crime continuado como também lançaram as bases político-criminais do novo instituto que, posteriormente, foi sistematizado pelos práticos italianos dos séculos XVI e XVII.

O aspecto teleológico do reconhecimento da continuidade volta-se indubitavelmente ao favorecimento do agente.

É digno de registro que o Código Penal brasileiro adotou, quanto ao crime continuado, a teoria da ficção, segundo a qual as várias ações realizadas pelo agente, individualmente consideradas, já seriam consideradas crimes, mas, por serem praticadas em um mesmo contexto, são reunidas e consideradas fictamente como um único crime, todavia, com previsão de aumento de pena.

A doutrina pátria é remansosa. Por todos, Celso Delmanto18:

Existem duas posições na doutrina: a. a unidade do crime continuado é fictícia e resultante da lei; b. a unidade é real e verdadeira. O CP adota a teoria da ficção jurídica (a) e não a da unidade real.

O objetivo do instituto, inspirado em razões de política criminal, é beneficiar o agente que pratica num mesmo contexto vários crimes e que, em razão disso, caso as penas correspondentes a cada delito fossem somadas, poderia sofrer reprimenda desproporcionalmente exacerbada.

Para a caracterização do crime continuado devem estar presentes os seguintes requisitos:

a) mais de uma ação ou omissão;

b) a prática de dois ou mais crimes da mesma espécie;

c) condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes;

d) os crimes subsequentes devem ser havidos como continuação do primeiro.

Registre-se, ainda, que há divergência doutrinária e jurisprudencial sobre ser a unidade de desígnios requisito para o reconhecimento da continuidade delitiva.

Duas teorias principais disputam o tratamento do tema, a saber, a teoria objetiva pura e a teoria objetivo-subjetiva, sendo que a diferença entre elas reside na desnecessidade, para a primeira, do elemento subjetivo (unidade de desígnios) para a configuração da continuidade delitiva, bastando a homogeneidade de elementos de ordem objetiva. Para a segunda teoria, o elemento subjetivo é imprescindível para a configuração da continuidade.

Reputamos ser a teoria objetivo-subjetiva a mais consentânea com o nosso sistema penal, não obstante a Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal19 consagrar verdadeiro paradoxo ao registrar, in verbis:

59. O critério da teoria puramente objetiva não revelou na prática maiores inconvenientes, a despeito das objeções formuladas pelos partidários da teoria objetiva subjetiva. O Projeto optou pelo critério que mais adequadamente se opõe ao crescimento da criminalidade profissional, organizada e violenta, cujas ações se repetem contra vítimas diferentes, em condições de tempo, lugar, modos de execução e circunstâncias outras, marcadas pela evidente semelhança. Estender-lhe o conceito de crime continuado importa em beneficiá-la, pois o delinquente profissional tornar-se-ia passível de tratamento penal menos grave que o dispensado a criminosos ocasionais.

Embora o texto inicie esclarecendo que o critério da teoria puramente objetiva não revelou maiores inconvenientes, o que sugere tenha sido esta a teoria adotada pelo Código Penal, posteriormente afirma que o projeto adotou entendimento de que é inaceitável que o delinquente profissional receba tratamento penal menos grave que o dispensado a criminosos ocasionais.

Assim, a unidade de desígnios deve estar presente para o reconhecimento da continuidade delitiva, pois entendimento contrário levaria ao estímulo da reiteração criminosa, na exata medida em que, praticado um determinado ilícito penalmente relevante, os demais, ainda que sem qualquer liame subjetivo com o primeiro, acarretariam apenas e tão somente um acréscimo de pena.

Registre-se, ainda, a opinião de Rogério Greco20:

Acreditamos que a última teoria – objetivo-subjetiva – é a mais coerente com o nosso sistema penal, que não quer que as penas sejam excessivamente altas, quando desnecessárias, mas também não tolera a reiteração criminosa. O criminoso de ocasião não pode ser confundido com o criminoso contumaz.

Na jurisprudência, a teoria objetivo-subjetiva também encontra respaldo, conforme anotam os seguintes precedentes do egrégio Superior Tribunal de Justiça:

[...] 1. A jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que, para caracterizar a continuidade delitiva, é necessário o preenchimento de requisitos de ordem objetiva e subjetiva. 2. "Se entre as séries delituosas houver diferença de meses, não haverá continuidade delitiva, mas sim reiteração delitiva, devendo ser aplicada a regra do concurso material" (REsp n. 765.590/RS, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, DJ 29.5.2006). 3. A diversidade de agentes na execução criminosa, revelada pela atuação individual no primeiro fato e coletiva no segundo, afasta o requisito objetivo da identidade do modus operandi, indispensável ao reconhecimento do crime continuado. 4. Constatada a inexistência da identidade de condições de tempo, lugar e modus operandi nas condutas delituosas, afasta-se a idéia de continuidade delitiva para se acolher a tese da habitualidade ou profissionalismo na prática de crimes, circunstância que merece um tratamento penal mais rigoroso, tendo em vista o maior grau de reprovabilidade.21

[...] II – Esta Corte vem entendendo, na dicção de sua douta maioria, que não basta para a caracterização da continuidade delitiva apenas o preenchimento dos requisitos de ordem objetiva. Faz-se mister, ainda, a presença do requisito da denominada unidade de desígnios ou do vínculo subjetivo entre os eventos (Precedentes). III – "Não estando presentes os requisitos exigidos pelo legislador, não se configura a continuidade delitiva, mas sim a habitualidade criminosa." (HC n. 75.199/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Jane Silva – Desembargadora convocada do TJ-MG, DJU de 15.10.2007). Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, denegada.22

No mesmo sentido a posição do Pretório Excelso:

O Tribunal, por maioria, indeferiu habeas corpus, afetado ao Pleno pela 2ª Turma, impetrado em favor de denunciado pela suposta prática dos delitos previstos nos artigos 213 (uma vez), 214 (duas vezes), 213 e 214 (duas vezes), esses últimos c/c o art. 71, todos do CP, e condenado a cumprimento de pena em regime inicialmente fechado, pelo juízo de 1º grau, no qual se pretendia fosse reconhecida a continuidade delitiva dos referidos crimes – v. Informativo n. 542. Prevaleceu o voto do Min. Ricardo Lewandowski, primeiro na divergência, que, citando o que decidido no julgamento do HC n. 96.959/SP (DJE de 17.4.2009), entendeu ser preciso examinar caso a caso para verificar se a intenção do agente foi a de cometer dois ou mais crimes de forma independente, ou se o seu desígnio consistiu, mediante uma única ação, constranger a vítima, para se saber se as penas desses crimes, quando cometidos conjuntamente contra uma mesma vítima, serão computadas segundo a sistemática do concurso material ou da continuidade delitiva. Asseverou que, na espécie, o paciente, de forma autônoma, teria desejado dois resultados diversos, porquanto os crimes sexuais teriam sido praticados contra vítimas diferentes, em momentos diferentes, com lapso temporal significativo. A Min. Cármen Lúcia, seguindo a divergência, manteve-se na linha da jurisprudência da Corte no sentido de não haver se falar em continuidade delitiva dos crimes de atentado violento ao pudor e estupro ainda que perpetrados contra a mesma vítima. Considerou que os crimes seriam do mesmo gênero, mas não da mesma espécie, e teriam sido praticados de forma autônoma, em momentos diferentes, contra vítimas diferentes, com intenções diversas, portanto, não possuindo sequer um mesmo elemento que pudesse caracterizar a continuidade delitiva. Também acompanharam a divergência, reportando-se a precedentes da Corte, os Ministros Joaquim Barbosa (HC n. 95.705/RS, DJE de 24.4.2009), Carlos Britto (HC n. 95.923/RS, DJE de 13.3.2009), Ellen Gracie (HC n. 91.370/SP, DJE de 20.6.2008) e Celso de Mello (HC n. 95.071 MC/RS, DJE de 27.6.2008). Vencidos os Ministros Cezar Peluso, relator, Eros Grau, Marco Aurélio e Gilmar Mendes, Presidente, que deferiam a ordem. Por unanimidade, tendo em conta a declaração da inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/1990 no julgamento do HC n. 82.959/SP (DJU de 1º.9.2006), concedeu-se o writ de ofício para autorizar a progressão de regime ao paciente, caso a ela tenha jus, segundo decisão do juízo da execução, nos termos do art. 112 da Lei de Execução Penal – LEP.23

Estabelecidos os contornos do instituto, inclusive com relação à necessidade da presença do elemento subjetivo (unidade de desígnios ou liame subjetivo entre os eventos) e tendo em vista o que se afirmou acima acerca da possibilidade de caracterização do crime continuado na hipótese de vários delitos de estupro (abrangendo a prática da conjunção carnal e de outros atos libidinosos segundo a novel redação do artigo 213 do CP), é preciso agora analisar as hipóteses em que seria, em tese, cabível o reconhecimento da continuidade delitiva, sendo possível pensar em três situações distintas:

  1. O agente pratica vários estupros nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes contra a mesma vítima: possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva (CP, artigo 71, caput);
  2. O agente pratica vários estupros nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras contra vítimas diversas: aplicação do parágrafo único do artigo 71 do Código Penal;

  3. O agente pratica vários estupros (mais de uma ação) em circunstâncias diversas de tempo, lugar, modo de execução e outras contra vítimas diferentes: há concurso material (CP, art. 69).

Vejamos cada uma das situações.

Na primeira situação, é possível o reconhecimento da continuidade delitiva, pois os vários estupros (mais de uma ação) são praticados na mesma oportunidade, vale dizer, nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução (constrangimento da vítima, mediante violência ou grave ameaça) e outras semelhantes contra uma mesma vítima, podendo ser havidos os subsequentes como continuação do primeiro.

Com a unificação dos crimes de estupro e de atentado violento pudor na mesma figura delitiva, agora denominada estupro, estes passaram a ser considerados necessariamente como crimes da mesma espécie.

Nesse contexto, é possível, também, entrever o liame subjetivo entre as condutas (unidade de desígnios).

Assim, aplicar-se-á a pena prevista no artigo 213 do CP (reclusão, de 6 a 10 anos) aumentada de 1/6 a 2/3.

O aumento no crime continuado deve ter por base o número de infrações criminais praticadas, ou seja, a quantidade de resultados obtidos pelo agente.

Nesse sentido a jurisprudência é remansosa. Por todos, os seguintes arestos:

[...] O acréscimo relativo à continuidade delitiva deve considerar o número de infrações cometidas, sendo que, em regra, a prática de apenas dois delitos em continuidade, o aumento procedido seria o mínimo legal.24

[...] 1. Uma vez reconhecida a existência de continuidade delitiva entre os crimes praticados pelo paciente, o critério de exasperação da pena é o número de infrações cometidas.25

Situação diversa é aquela em que o agente pratica vários estupros nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes, mas contra vítimas diversas.

Basta pensar na hipótese em que o agente invade uma residência e mediante violência e grave ameaça constrange mãe e filha a praticarem conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Considerando esse contexto, aplica-se o parágrafo único do artigo 71 do Código Penal brasileiro, que dispõe:

[...] Parágrafo único – Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

Com efeito, a violência ou grave ameaça à pessoa integra o tipo penal do estupro e, havendo vítimas diferentes, aplica-se a referida norma, que consagra o crime continuado específico ou qualificado.

O tratamento para tal situação é evidentemente mais rigoroso que o dispensado ao crime continuado em sua acepção simples.

Assim, o juiz poderá, considerando a pena de 6 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão, aumentá-la até o triplo. Evidentemente, deverá fazê-lo de forma fundamentada (CF, artigo 93, IX26), apontando as circunstâncias levadas em consideração para a majoração da reprimenda (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias dos crimes).

Todavia, há limites. A pena não poderá exceder a que seria cabível caso aplicada a regra do artigo 69 do Código Penal (concurso material). É a aplicação do chamado concurso material benéfico.

Ademais, a referência ao artigo 75 do Estatuto Penal impõe que a pena definitiva não poderá ser cumprida em tempo superior a trinta anos.

Por fim, temos a situação em que o agente pratica vários estupros (mais de uma ação) em circunstâncias diversas de tempo, lugar, modo de execução e outras contra vítimas diferentes.

Nesse caso, ante a ausência dos requisitos para a configuração da continuidade delitiva, aplica-se a regra do concurso material (CP, art. 69) e serão somadas as penas de tantos quantos forem os crimes perpetrados pelo agente, pois aqui há, em verdade, reiteração criminosa.

 

8 Conclusões

 

  1. A expressa alusão a um dos aspectos da dignidade humana (dignidade sexual) na abertura do Título VI do Código Penal brasileiro tem o condão de condicionar a interpretação das alterações trazidas pela novel lei à observância da dignidade humana como valor ético irredutível, merecedor de adequada e efetiva tutela penal.

  2. O artigo 7º da Lei n. 12.015/2009 revogou a conduta então incriminada no artigo 214 do Código Penal brasileiro, que continuou, todavia, a ser prevista como penalmente relevante, agora no bojo do artigo 213 do Estatuto Repressivo, que sofreu alteração em sua redação para albergá-la, não havendo falar, portanto, em abolitio criminis.

  3. A previsão legal dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor na mesma figura delitiva sob a denominação estupro afastou o óbice até então invocado pela jurisprudência dominante nos tribunais superiores para afastar a possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, a saber, serem os crimes de espécies diversas.

  4. O reconhecimento da continuidade delitiva dependerá, em cada caso concreto, da presença dos requisitos previstos no artigo 71, caput, do Código Penal brasileiro.

  5. Assim, não obstante a possibilidade de reconhecimento, em tese, da continuidade delitiva, é preciso salientar que haverá tal possibilidade apenas quando preenchidos os requisitos do artigo 71, caput, do Código Penal, ou seja, é preciso que o agente pratique mais de um estupro (mais de uma ação ou omissão), que os crimes sejam de mesma espécie (afastado o óbice de crimes de espécies diferentes existente anteriormente à Lei n. 12.015/2009, que unificou no mesmo tipo penal os delitos de estupro e atentado violento ao pudor), praticados nas mesmas condições de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes e que o(s) crime(s) subsequente(s) seja(m) havido(s) como continuidade do primeiro, além da unidade de desígnios ou do liame subjetivo entre eles.

  6. Na hipótese da presença dos requisitos anteriores, mas havendo vítimas diversas, há aplicação do parágrafo único do artigo 71 do Código Penal (crime continuado qualificado ou específico), com a possibilidade de exasperação da pena até o triplo, desde que apresentada fundamentação idônea, considerados a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, bem como os motivos e circunstâncias do crime, respeitado o limite previsto nos artigos 70, parágrafo único (concurso material benéfico), e 75 (limite máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade), todos do Código Penal.

  7. Há impossibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva quando o agente pratica vários estupros em circunstâncias diversas de tempo, lugar, modo de execução e outras semelhantes contra vítimas diferentes: há, neste caso, concurso material (CP, art. 69), eis que, em tal hipótese há, em verdade, reiteração criminosa.

  8. A Lei n. 12.015/2009, ao unificar as condutas de estupro e atentado violento ao pudor na mesma figura típica e, com isso, autorizar, quando previstos os requisitos do artigo 71, caput, do Código Penal, o reconhecimento da continuidade delitiva, é norma penal mais benéfica e, por conseguinte, deve retroagir para beneficiar o réu, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988.

 

Referências

 

Alexy, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução por Ernesto Garzón Vades. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

Bittencourt, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

Brandão, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

Delmanto, Celso et al. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

Franco, Alberto da Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

Gomes, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral: teoria constitucionalista do delito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

Greco, Rogério. Curso de direito penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.

Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

Piovesan, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição brasileira de 1988. In: Novelino, Marcelo (Org.). Leituras complementares de direito constitucional: direitos humanos e direitos fundamentais. 3. ed. Salvador: Jus Podium, 2008.

 

1 Piovesan, 2008, p. 52.

2 “Art. 7º Revogam-se os arts. 214, 216, 223, 224 e 232 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e a Lei n. 2.252, de 1º de julho de 1954.”

3 Franco, 1995, p. 45.

4 Brandão, Cláudio, 2008, p. 64.

5 STJ, 5ª Turma, HC n. 112.829/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe de 1º.12.2008.

6 STJ, 5ª Turma, HC n. 76.013/SP, Relator Ministro Felix Fischer, DJU de 15.10.2007, p. 316.

7 STF, 2ª Turma, HC n. 96.942/RS, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe de 19.6.2009.

8 Nucci, 2005, p. 787-788.

9 Verificar o HC n. 82.959/SP (STF, Relator Ministro Marco Aurélio).

10 Greco, 2005, p. 668.

11 Gomes, 2006, p. 33.

12 “XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: [...]”.

13 STF, 2ª Turma, HC n. 71.009-3/MG, Relator Ministro Paulo Brossard, DJU de 17.6.1994.

14 “XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”.

15 “Art. 2º – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

16 “Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;”.

17 Bittencourt, 1997, p. 287.

18 Delmanto, 2007, p. 231.

19 Publicada no Diário do Congresso (Seção II), de 29 de março de 1984.

20 Greco, 2005, p. 672.

21 STJ, 5ª Turma, Resp n. 759.991/RS, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe de 8.9.2008.

22 STJ, 5ª Turma, HC n. 93.440/SP, Relator Ministro Felix Fischer, DJe de 22.4.2008.

23 STF, HC n. 86.238/SP, Relator Ministro Cezar Peluzo, 18.6.2009, Informativo STF n. 551.

24 STJ, 5ª Turma, HC n. 39.380/PR, Relator Ministro Gilson Dipp, DJU de 28.3.2005.

25 STF, HC n. 83.632/RJ, Relator Ministro Joaquim Barbosa, DJU de 23.4.2004.

26 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”.

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